segunda-feira, 24 de setembro de 2012
Sobre o Sátiro e o Macaco em "O Nascimento da Tragédia": uma breve exposição
quinta-feira, 10 de março de 2011
Enfim ele: Emil Cioran, o mártir da lucidez.
A decepção lhe encobre o rosto, lhe emudece a voz, mas a pena continua a pulsar, destemida, vibrante e desencantadoramente acida. Emil M. Cioran, filósofo romeno radicado na França, falou pouco publicamente durante sua vida, não acreditava nas palavras, mas, quase forçosamente (ou pelo menos, é isso que ele quer nos fazer acreditar), escrevia. Não era apenas descrença em relação à palavra, Cioran simplesmente achava que a atividade de nomear algo era inútil, era um sinal da pretensão e da fraqueza humana, da impossibilidade de viver e sentir o objeto nomeado em sua finitude exasperada, era um sinal de não saber lidar com o mundo em seu tenebroso devir, uma maneira de esquecer este devir. Como conseqüência dessa impossibilidade e da teimosia do homem em não percebê-la e obedecê-la, ou seja, criando as mais variadas teorias éticas, teológicas, ontológicas, até as teorias sociológicas, antropológicas e etc, o homem seria como um animal errante que pelo excesso de crença (inclusive nos conceitos mais racionais) ou de descrença (este seria o caso do homem contemporâneo), seguiria causando com grande maestria sua própria destruição. Por isso, Cioran trabalhou incessantemente na condenação de todos os sistemas de pensamento. Segundo o próprio:
Mas por outro lado ele reconhecia que era impossível ao homem não tentar nomear as coisas, não tentar forjar teorias de explicação do mundo e do devir, era instintiva no homem esta auto-sabotagem. Proclamando esta sabotagem e falando-nos de sua descrença, advinda de um olhar radicalmente lúcido para os acontecimentos humanos e a história do pensamento (como a citação acima deixa claro), ele escrevia. Este olhar e a escrita que ele gerou denunciava a incapacidade fundamental do homem chegar ao absoluto, incapacidade enraizada no seu próprio corpo. -Corpo, espaço aberto da degeneração e dos limites ordinários e nojentos dos homens-. Diante deste espaço, o corpo, e desta incapacidade, o que, segundo Cioran, seria o correto a fazer? Existiria algo efetivamente correto a ser feito?
A indiferença, a preguiça e a dúvida seriam as verdadeiras virtudes de um homem, só com estes sentimentos esta besta irreparável andaria sem causar tanta destruição. Nesse sentido ele chaga a fazer um elogio à letargia:
Assim, seguir escrevendo poderia tanto ser sinal da impossibilidade fundamental do homem, ou seja, tentar, pela mordaz ignorância arrogante, parar e rebaixar aquilo que não tinha e nunca terá nenhuma familiaridade com o nosso mundo errôneo (principalmente se pensarmos a crítica feita por ele aos escritores contemporâneos, que segundo ele, sempre escreviam de mais e não tinham mais nenhuma noção do absoluto, rebaixando a literatura ao lugar de dramas que, a partir, principalmente das novas disciplinas do saber -psicanálise, antropologia, sociologia e etc- tentavam tratar de tudo, mas não falavam essencialmente de coisa alguma), quanto demonstração da única maneira virtuosa de se viver em meio a esse redemoinho de fanatismo e sangue, a saber, a escrita lúcida e cética. Esta lucidez é diferente da consciência, que é pequena e tem relações históricas com a chegada de certo tipo de pensamento ao poder, digamos assim.
Aqui faço um pequeno corte, necessário, para focar, na crítica que citei acima, feita aos escritores contemporâneos. Este corte nos ajudará a definir melhor as diferentes formas de crítica que aparecem na obra do filósofo romeno, e consequentemente, o elogio a certa maneira de escrever.
A crítica ao pensamento contemporâneo é dupla. Primeiro questionando os fundamentos das novas disciplinas do saber, que, para Cioran, eram fundamentos imprecisos e pouco rigorosos, conseguindo, contudo, arrecadar inexplicavelmente tantas e tantas cabeças ao seu redor. Depois, colocando em questão os fins que justificariam os tais pensadores. De grosso modo Cioran ver uma semelhança fundamental entre escritores e pensadores contemporâneos. Todos eles se preocupavam demais com a vida humana e seu perpétuo melhoramento, esta havia se tornado a grande finalidade, numa postura marcadamente hedonista. O prazer carnal, a gastronomia, as disciplinas humanas, como já citamos acima, tudo isso era o sinal maior de uma decadência que havia começado na modernidade, com a fé nos conceitos, na racionalidade do homem. O mundo contemporâneo era o ápice do abatimento e do desprezo em relação às forças ‘superiores’ que moveriam o mundo.
“Quem, lúcido, se compreenda, se explique, se justifique e domine seus atos, jamais fará um gesto memorável.”
Podemos ver claramente que a diferença do pensamento antigo para o pensamento moderno e contemporâneo se dá no esvaziamento transcendental das novas disciplinas. Estas nunca tiveram como meta principal de seu projeto investigativo e conceitual atingir e viver o absoluto -o que de qualquer modo seria impossível, mas a entrega é sempre louvável e digna- antes, insistiam sempre em privilegiar o homem e o seu universo social como ponto de partida e chegada para as mais diversas digressões. O paradigma da consciência moderna vai progressivamente colocando o homem como centro e princípio, fechando os olhos para tudo que nos transpassa e determina. Usando um termo nietzschiano que vem bem a calhar, era o homem doente do homem, ou como o próprio Cioran dizia:
“Vivemos em um clima de esgotamento: o ato de criar, de forjar, de fabricar é menos significativo por si mesmo que pelo vazio, pela, pela queda que se segue a ele. Comprometido por nossos esforços sempre e inevitavelmente, o fundo divino e inesgotável situa-se fora do campo de nossos conceitos e de nossas sensações”
Como em qualquer outro homem, ou filósofo, todo esse filosofar amargurado e desiludidamente lúcido saia do seu próprio corpo. Esta é, aliás, uma especificidade interessante do Cioran. Ele dá a fisiologia um papel fundamental na sua filosofia, não é o primeiro nisso, mas parece ser o primeiro a marcar a influencia indispensável e negativa do corpo e suas debilidades para o caminho da sua filosofia, não como algo exterior, como um obstáculo à filosofia, mas como uma debilidade constituinte de todo patético filosofar.
Um dos aspectos da filosofia fisiológica do Cioran é a atenção que ele dispensa para a insônia. A insônia que lhe acompanhou desde sua adolescência até sua morte, foi fundamental em sua compreensão lúcida da vida. A insônia fez do jovem Cioran um transeunte soturno, passava noites e noites em claro vagando, primeiro, por sua cidade e logo depois por Paris, a cidade em que viveu toda sua vida adulta. Filosoficamente fundamental é a conseqüência da insônia, ela engendrou nele uma visão do tempo como algo imóvel. O que existia era a eternidade com suas diabruras, e o sono era uma dessas diabruras da eternidade, fazendo do homem este animal tão fácil de iludir. Dormia e tinha a ilusão de mudança, de recomeço, quando na verdade era só mais do mesmo, ou seja, a eternidade em seu movimento próprio e devir infindo.
Dessa visão da eternidade saída das madrugadas sem fim que a insônia lhe proporcionou, Cioran nos deu outro modo de pensar a história. Para ele a história não é linear e progressiva, era uma página de grandes tristezas e arroubos irrepetíveis de genialidade. Um povo tem seu espírito e ele irá se perpetuar até que aquele povo consiga degenerar este espírito. O homem, esse animal coletivo, cuja solidão, técnica de refinamento do espírito, lhe é imprópria, sempre exgarçarar a força que o criou, por utopias, as mais patéticas. Voltamos a afirmar, não tem outro jeito, até por que, como o próprio Cioran diz: “A lucidez completa é o nada”.
Assim como há os arroubos de genialidade, há também, por outro lado, momentos privilegiados onde podemos ver a formatação quase exata da decadência. Antes, porem, de nos depararmos com esses momentos, vamos rapidamente ver o que para o nosso autor vem a ser decadência: “Os mitos tornam-se novamente conceitos: é a decadência (...)”, ou ainda: “A decadência não é outra coisa senão o instinto tornado impuro pela ação da consciência.” Vemos com clareza a ligação feita entre progresso racional e decadência, a formalização do pensamento e a perda das intrigantes referências do absoluto nos jogaria no pequeno mundo das verdades demonstráveis, destituindo o mistério para no seu lugar colocar a prova, tudo se prova, todo argumento, tudo se iguala e enfraquece, decadência!
“E se busco a data mais mortificante para o orgulho do espírito, se percorro o inventário das intolerâncias, não encontro nada comparável a este ano de 529, no qual, por ordem de Justiniano, a escola de Atenas foi fechada. Uma vez oficialmente suprimido o direito à decadência, crer torna-se uma obrigação... Este é o momento mais doloroso na história da Dúvida.”
Diante dessa visão da história, como um sem fim de horrores, seria ridícula a idéia humana de designar um objetivo, uma finalidade, a todo este triste teatro que se desenrolará para sempre. Nós, contemporâneos não somos dignos nem dessa eternidade que nos espera, por desprezá-la, por louvarmos longa e fervorosamente a nossa mediocridade, por não querer sair da ilusão hedonista que vivemos. O homem moderno conquistou a liberdade, os direitos, a tranquilidade, mas o vazio é imenso, mais que o grande vazio, o que identificava o homem moderno é o esgotamento, a náusea e a sensação de inutilidade diante das conquistas modernas, todas demasiadamente carentes de absoluto, de transcendência, enfim, de uma força fundamental que fosse capaz de forjar e justificar sempre e de novo a existência humana, como foram, para Cioran, as obras de Homero, Bach e Shakespeare.
Para finalizar acho fundamental, ao menos, dois esclarecimentos. Um sobre algo que já está no texto, a saber, a pertinência, e até mesmo a positividade, da escrita em Cioran, o outro para tentar acalmar os mais apressados, aqueles que logo ligariam tal filosofia a um elogio ao suicídio.
Bem, para tentar jogar um pouco mais de luz à questão da escrita, acredito que como um bom pessimista e refinado blasfemador, Cioran escreve para dissolver tudo que for frágil no pensamento ocidental, para desdenhar e destituir a ilusão mesquinha e egoísta de progresso, por exemplo. Mesmo aquelas teorias mais consistentes podem sofrer um dano irreparável pelas mãos céticas, pelos olhos lúcidos e pelas gargalhadas desiludidas e sarcásticas deste que é uma dos maiores pessimista do sec XX. Ele escreve, por fim, para restituir a dúvida fundamental em todos os espaços desta sociedade fria e cheia de pequenas certezas, alargando os limites do pensamento. Essa tarefa é absolutamente positiva, diluir certezas seculares ou certezas pouco rigorosas é uma ótima forma de limpar o solo para pensamentos futuros, que se interesse em criar um mundo novo, tão forte quanto ele pode ser.
Chagamos ao fim da nossa pequena exposição sobre este que agora podemos chamar (talvez) com menos terror de mártir da lucidez.
Referêmcias Bibliográficas
Emil M. Cioran__Breviário da Decomposição.
História e Utopia
Silogismos da Amargura
segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011
Comentário da obra "Esporas" de Derrida
E aqui temos do estilo à espora, o objeto pontudo, que em um só relance nos remete ao estilete (que pressupõe o estilo), ao punhal, a uma flecha; e também uma caneta, uma pena que escreve. Com isso alcança-se a dimensão do co-pertencimento: o texto e a escrita, significado e significante e, no caso deste texto, feminino e masculino.
segunda-feira, 2 de agosto de 2010
Egoísmo vs Altruísmo
Quem é o altruísta? É, sob a lógica dessa categorização, o mais egoísta. Porém, estas categorias só existem para que isso não seja visto; para negar toda vontade, para domesticá-la, normatizá-la.
quinta-feira, 27 de maio de 2010
Gianni Vattimo e o Niilismo
Para não perder as conquistas da filosofia em seu gesto mais violento, a saber, a destruição de todo e qualquer fundamento metafísico feito pelo pensamento nietzschiano e sua posterior afirmação de amor à vida trágica, Vattimo assume o niilismo e caminha com ele, com a hermenêutica e com a história do ser para uma nova racionalidade.
Uma racionalidade que não era mais a racionalidade forte dos fundamentos e da verdade. O desejo por esta nova racionalidade é pensado como alicerce do 'pensamento fraco' e ele, como alicerce para o sucesso dela frente ao relativismo anêmico e suicida da contemporaneidade.
Há questões fundamentais, para Vattimo, que compõem estes dois temas. Estas questões são, a descoberta, feita por Nietzsche, da ligação entre pensamento metafísico e modos de controle e poder. A não obrigatoriedade de se pensar, em oposição a esta ligação, teorias que queiram libertar o sujeito de um possível sujeição. O contrário de tal desejo, ou seja, a possibilidade de convivência harmônica, mas não obediente, em que se perceba que esta ligação é uma convenção e que, por meio de um consenso advindo desta nova racionalidade, podem se repensadas de maneira positiva, sem o peso do fundacionismo metafísico. A vivencia do ser como acontecer e refletir à meia luz, um ser que saiba ser acontecimento no estado enfraquecido em que nos encontramos. O niilismo, porque nega a força, que é afinal o fundamento de toda metafísica, ou seja, citando o próprio Vattimo, nega a "força que o próprio pensamento sempre se atribuiu, em nome do seu acesso privilegiado ao ser enquanto fundamento" (Pier Aldo Rovati e Gianni Vattimo, O Pensamento fraco, prefácio) e se coloca em uma atitude de questionamento constante. E, por fim a recolocação da ligação entre ser e linguagem sendo pensada agora como transmissão de uma história do ser para uma história do enfraquecimento do ser, que é, afinal, para Vattimo, a única história possível de ser feita, distorcida e transmitida dentro da filosofia ocidental.
Há em Vattimo, como acabamos de ver, pressupostos para o seu filosofar, a maneira de se relacionar com estes pressupostos é tão importante quanto eles mesmos. A hermenêutica niilista, método utilizado por Vattimo, é o pensamento que se instala nas ruínas da filosofia e com uma atitude de respeito, escuta e distorção, promove e propaga o pensamento fraco.
Respeito porque ele filosofará sempre a partir destas ruínas, porque será sempre um repensar da e na odisséia filosófica. A escuta tem relação direta com este respeito, só que ganha em relação ao desvelamento do ser, que agora nada mais é. Desvelamento que nunca acontece por inteiro, sempre é parcial, é preciso então atenção e escuta. Distorção é a uma das partes ativas da ontologia fraca e niilista de Vattimo, pois que, ela é a possibilidade de uso de conceitos metafísicos em seu enfraquecimento, colocando-os agora em serviço desta sua filosofia da ‘meia luz’ contra a luminosidade da metafísica.
O termo meia luz, tirado do texto do próprio Váttimo, é perfeito para falarmos deste pensamento que usa, com toda propriedade do horizonte pós-metafísico, os termos e temas da tradição contra ela mesma. Ou seja, um ultrapassamento que sempre mantém. Nunca abandona nada, sempre considera estes termos, conceitos e temas sendo constitutivos de seu passado, como referências que vão ser sempre reencontradas e pensadas como “dados do destino, no sentido de envio” (Rosano Pecoraro, Niilismo e pós-modernidade – Introdução ao pensamento Fraco de Gianni vattimo).
Tentando sintetizar o ‘pensamento fraco’ dizemos, trata-se de um pensamento de herança e distorção(distorção como remeter-se, é assim a tradução da palavra distorção para o italiano, e Vattimo aproveita tal aproximação, entre distorção e remeter-se para falar mais uma vez de algo que será sempre repensado, já que é constituinte. Mas, sempre é bom lembra que tais termos, conceitos ou temas serão repensados) da tradição filosófica como enfraquecimento do ser no horizonte niilista pós-moderno. Para superar este horizonte Vattimo pede que esta herança seja aceita em sua grandeza de ruína como único lugar de onde podemos falar articuladamente, já incluída ai uma nova racionalidade e certa idéia de consenso histórico cultural, contra este niilismo. A aceitação desta herança pressupõe, inevitavelmente, a aceitação da religião cristã. Religião que é fundada, como observa Vattimo, positivamente, sob o signo da interpretação de um livro e da fraqueza de Deus, ou seja, sua encarnação. Ter-se feito homem e habitado entre nós é o sinal desta fraqueza que Vattimo ver em toda a história da cultura ocidental, desde ai.
Depois desta pequena incursão no pensamento vattiminiano, é necessário, para fazer jus ao esforço anti-metafísico do próprio Vattimo, colocar alguns questões:
Será que Vattimo não cai em uma filosofia do mesmo, e, se assim for, volta a fundamentos metafísicos por não conseguir desestruturar isto que é próprio dele, a saber, seu fechamento em si mesmo, seu machismo, seu eurocentrismo, humanismo, ou para usarmos o termo correto, seu fundamentalismo?
Qual, então, é a real relevância da filosofia de Vattimo para nós brasileiros que sempre falamos apartir de outras línguas e culturas? Para nós que somos formados por culturas em que o Deus, único e perfeito, não chegou nem a nascer, quem dirá a morrer? Para nós que somos emoldurados por uma série de outros. Até onde essa filosofia nos serve, nos acolhe?
Fica claro que qualquer filosofia que queira ser uma resposta ao niilismo, sem recair nos fundamentos metafísicos, deve sempre se valer de uma abertura ao outro em sua radicalidade, pois, só assim percorrerá o movimento que estrutura toda questão, a saber, a não aceitação das definições supremas que sempre afasta o outro e funda todo fundamento metafísico.
Para concluir devo dizer que desconfio fortemente da precariedade e parcialidade das questões e, possíveis, hipóteses que levantei aqui. Mas ainda assim me parece ter, este discurso, percorrido parte de um caminho fundamental para pensar, com menos fatalismo e desespero, aquilo que coloquei no início: o que pode e deve fazer a filosofia de hoje, como ela se insere e como ela pode buscar o para alem do niilismo contemporâneo.
domingo, 21 de março de 2010
Prova de mestrado (para não ganhar bolsa)
Não caberá aqui um esboço acerca do que são filosofia, verdade e conhecimento para a filosofia antiga e as posteriores nuances que estes sofrem nos outros períodos históricos. Pretendo apenas esboçar, ou tentar esboçar, a interpretação de Heidegger para essas questões. E isto de maneira indireta, perpassa sua crítica à modernidade -sobretudo àquelas questões acerca da objetividade - e a sua recolocação da ontologia.
Heidegger sabiamente aponta que antecipadamente a toda colocação ôntica, vigora uma questão ontológica. O que está em questão sempre é o ser, mas não propriamente, ou apenas, o ser do ente ao qual a cada vez nos voltamos, mas àquele ser que se está sendo naquele olhar para o ente, naquela participação ou co-pertença que diz acerca de um ente qualquer. Isto é o que se convencionou como ver em perspectiva, e é de inspiração fenomenológica. A fenomenologia chamou a atenção para como se "olha" as coisas, ela propriamente se interessa pela relação, afinal aquilo que se diz acerca de um ente externo, diz muito acerca de quem diz. A nuance, ou a mudança, que se adquire da fenomenologia de Husserl para a ontologia de Heidegger, pouco ou quase nada nos interessa aqui. Pois com o que foi dito acima, já podemos alcançar a crítica de Heidegger à modernidade, ou mais especificamente, a maneira como a modernidade tratou o conhecimento.
A etimologia da palavra conhecimento (gnosiologia), tanto em grego quanto em latim dizem coisas muito próximas: elas falam de nascer, de geração. Não quero com isso ignorar toda possível crítica de Heidegger às traduções latinas, mas apenas lembrar que toda a modernidade fala e faz do conhecimento algo bem diverso do que essas duas palavras possivelmente dizem.
A partir da leitura de Heidegger, apontarei duas críticas:
A primeira se trata da estrutura proposicional. Esta se sustenta na divisão sujeito/predicado. Ela é, obviamente, uma estrutura usual, toda a linguagem se assenta sobre esta dualidade. Porém, o lugar onde esta dualidade tributa sua origem não é dual, quer dizer, sujeito e predicado se co-pertencem mutuamente, e o lugar desta origem diz respeito a uma possibilidade aberta e tornada usual, e isto passa despercebido na prática que se faz da verdade ligada à representação. Representação diz justamente de algo que não está presente, que está separado (p.ex. a relação sujeito/objeto), e a verdade da modernidade é a verdade desta separação.
A segunda crítica diz respeito à causação ôntica. Curiosamente, esta crítica também aponta para a não-presença dos dados, daquilo que a ciência toma para si como conhecimento. Quer dizer, um corpo humano são um conjunto de células e órgãos, o resultado de composições químicas e físicas ou a inteiração psicossomática de um sujeito específico? Este cálculo inadequado dos efeitos se anulam, não dizem, pois não apontam para o que vige, isto é, para a presença. Percorrendo o caminho inverso do devir, elas encontram algo não essencial da presença, algo que sobrevenha como precaução ou mesmo substituição. Com esta crítica não se quer eliminar toda esta forma de proceder, mas apenas ganhar o que porventura perdeu-se na busca da sabedoria. E isto diz respeito ao deixar ser, à presença como finitude, e ao aspecto não-causal da existência.
quinta-feira, 28 de janeiro de 2010
'Eu gostava de poesia, só depois fui me aproximar da ficção'
Várias línguas já haviam sido cortadas. O sol trazia atônito, mais um dia com ruas cheias de línguas e, ao seu redor, poças de sangue, numa cidade cada vez mais espantada. O crime monstruoso chocava a todos, mas era sempre um choque tardio, pois que, sem língua, tudo era só grito e todo grito era previsto.
Letargia.
O choque se desdobrava em vazio horizontal, suicídios e, às vezes, risadas tristes ou alegres.
Domingo, 23, ocorreu algo diferente, diferente. Diferente.
Os bois comeram alguns homens. O cinema voltou a ser adocicado e rupestre, mais do que tudo, os anjos, os anjos fodiam entre si, e cada foda era água nova pela assexualidade trazida pela resposta negativa de cada foda, mas essa água se dividia em duas no seu esporro, vindo da dor no membro inexistente. Essa água era dupla desmedida que se fazia cristalina, e outra além de negativa, uma cachoeira/hidrante-aberto-por-pivetes era o que saia dos anjos desiludidos. Pronto, anjos que queriam água espessa (cachoeira/hidrante-aberto-por-pivetes), seriam agora camundongos hipertensos, para sempre insatisfeitos.
Os vermes habitavam os restos das línguas dentro das bocas, agora, apodrecidas da gente da cidade. Ainda assim, o nariz inventava um som. Era um som grande e forte de nozes e dos vermes que estavam na língua e, de vez em quando, subiam da boca ao nariz. Talvez fizessem isso pelo som metafórico e voador que sai do nariz, talvez quisessem voar, talvez quisessem ser metáforas voadoras, talvez quisessem apenas se precipitar, em todos os casos estavam no som.
A cidade o prédio o mar, que devorou os anjos, não todos, só alguns.