segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Sobre o Sátiro e o Macaco em "O Nascimento da Tragédia": uma breve exposição


O SÁTIRO E O MACACO


Pois o problema da ciência não pode ser reconhecido no terreno da ciência
- Nietzsche, tentativa de autocrítica

         A leitura do primeiro texto de Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, nos oferece, em seus parágrafos §7 e §8, um bom lugar de pensamento a partir de duas figuras, dois arquétipos para o que é o homem e o que é a natureza. Este livro, que inaugura o pensamento de Nietzsche na história da filosofia ocidental, em tudo já adianta todas as questões centrais que o Nietzsche da maturidade irá abordar: A compreensão trágica da existência, a relevância do deus Dioniso na constituição do mundo grego (e da vida), a noção central da vida como criação, a prioridade da arte...
         O tema que viso discutir aqui foi sugerido por uma passagem que aparece no parágrafo §8:

A natureza, na qual ainda não laborava nenhum conhecimento, na qual os ferrolhos da cultura ainda continuavam inviolados – eis o que o grego via no seu sátiro, que por isso mesmo não coincidia com o macaco (O Nascimento da Tragédia, §8, p.57).

         A passagem citada está enredada por uma discussão em torno do conhecimento, contraposto à arte, esta entendida como cura da existência – cura do pessimismo -, e que de modo mais aproximado às questões do nascimento da tragédia, possuem relevância naquela cultura mítica dos gregos, donde pôde proceder a arte trágica a partir de rituais ao deus Dioniso. Algumas linhas antes, Nietzsche nos diz: “o conhecimento mata a atuação, para atuar é preciso estar velado pela ilusão” (Op.cit., §7, p.56). Duas coisas estão aí colocadas em paralelo: ação e conhecimento. Se nos ativermos à maneira como o conhecimento em sua modalidade moderna nos vem, a de causalidade mais particularmente, entenderemos o conhecimento como um, talvez não impeditivo à ação meramente, mas – e aí sim de maneira contundente, como um elemento que modifica a qualidade da ação. Subsiste nesta compreensão, algo pelo qual o filósofo Heidegger irá desenvolver muito bem e que atravessa todo o seu pensamento: a questão da técnica. Ao tentar chegar às coisas pelo caminho da causalidade e da técnica, perde-se o orgânico e espontâneo da existência em vista de um domínio (ou de uma tentativa de) sobre as coisas do mundo, em uma tentativa de vencer o peso da ação[1]. É por esta via, também, que se chega à dicotomia entre teoria e prática, caso que nesta obra de Nietzsche aparece na perda do caráter espontâneo e (cri)ativo da cultura trágica dos gregos.
Nesta primeira fase de sua obra, ainda preso a idéias românticas, Nietzsche não desenvolve inteiramente a contraposição entre o pessimismo e o otimismo e tende a tomar partido entre um e outro. Em outra obra desta mesma época, ao estudar o socratismo da cultura, acusa-o de ser essencialmente otimista: a dialética! E o faz justamente contrapondo ao espírito trágico. Mais tarde, em seu período da maturidade, irá deixar menos ambíguo o que queria dizer com otimismo e pessimismo, e os joga a um pertencimento mútuo:

[...] Ao reconhecer Sócrates como décadent, eu havia dado uma prova inteiramente inequívoca do quão pouco a segurança de minhas garras psicológicas era ameaçada por quaisquer idiossincrasias morais – a moral mesma como um sintoma de decadência é uma inovação, uma singularidade de primeira ordem na história do conhecimento. Quão alto [...] havia eu saltado acima da lastimável conversa de néscios sobre otimismo versus pessimismo! (Ecce Homo, O Nascimento da Tragédia, §2)

         Nietzsche abandona esta contraposição em prol de um salto para uma questão maior, e que, entretanto, já estava de maneira embrionária nesta sua primeira obra. Do que estamos falando? Da compreensão dionisíaca de mundo. É por isso que se tornou necessário para ele modificar o subtítulo da obra em questão: Helenismo e Pessimismo. Pois a contraposição não está no âmbito que separa o otimismo do pessimismo, mas sim noutra altura, a que possibilitou ao povo grego gerar uma arte tão profunda, de um povo imensamente criador. Essa contraposição, é importante expressar isto, não coincide também com outra, a dos deuses Apolo e Dioniso, uma vez evidente que a força criadora requer tanto de uma quando de outra. Assim, o problema colocado de maneira mais profunda assenta-se de maneira aqui ainda pouco esclarecida por sobre o que se compreende por Mito e o que se compreende por Ciência. Mas quando se fala aí em ciência, poderia se falar em cristianismo – ou, moralidade do pensamento causal. As intenções de Nietzsche, que unem a primeira às suas últimas obras, é a de promover uma virada na compreensão do mundo que supere de maneira radical isto que determinou decisivamente toda a história do ocidente. Seu primeiro esboço nesta direção é muito bem expresso na contraposição entre o sátiro e o macaco. Guardemo-nos de enxergar nesta contraposição apenas uma contraposição entre ciência e religião; até mesmo porque o texto do Nascimento da Tragédia nos oferece o testemunho de que antes de ser contraposto ao macaco, o sátiro é antes contraposto ao Pastor. Fiquemos atentos ao que a contraposição visa.
         O que é, portanto, um sátiro? É, antes de tudo, uma criatura encantada. Algo como um proto-humano, mas que se localiza distante da civilização tanto pela sua constituição física quanto pelo seu caráter. Sua constituição física é também sua constituição espiritual: meio homem, meio animal: da cintura para baixo possuía patas de bode, da cintura para cima era um homem de barba. Nietzsche entende que “diante dele, o homem civilizado se reduzia a mentirosa caricatura” (op.cit.). Mas – por quê? Por que o homem civilizado está abaixo deste proto-humano fictício? O que uma criatura lendária poderia ter de superior aos homens da cultura?
         Há duas implicações na comparação do Sátiro com o homem comum. A primeira delas é a primeira contraposição que Nietzsche se utiliza: A do Sátiro com o Pastor. Ao fazer essa contraposição, separam-se duas religiosidades, duas atitudes espirituais. A religiosidade é, em suma, uma relação com um deus ou deuses – com a criação. Se há na contraposição duas religiosidades, há, portanto, dois modos de se relacionar com esse deus ou deuses, e com a criação. Como são esses dois modos distintos de religiosidade? Testemunha-se tal distinção na relação do homem com a natureza, e é em cima do que se pretende com a natureza, que Nietzsche incide sobre, para fazer o seu juízo que separa o Pastor e o Sátiro. “Tanto o sátiro quanto o pastor idílico de nossos tempos modernos são ambos produtos de um anseio voltado para o primevo e o natural”. (Op.cit.)
Sabemos bem que este primeiro Nietzsche em tudo coincide com o movimento romântico alemão. Este desejo pela natureza é característico do romantismo. Mas ao contrapor o Pastor com o Sátiro, Nietzsche encontrou algo então, que o distingue de um mero idealismo pela natureza. Ele encontrou o dionisismo! O Sátiro enquanto uma espécie de sacerdote do deus Dioniso é o mensageiro da alegria e embriaguez da visão dionisíaca do mundo. Dioniso é sempre identificado à natureza, como uma força de atração e repulsão, de reunião e separação, em resumo: a força da natureza é sempre superior aos homens, e de modo tal que o divino está identificado à natureza naquilo que ela carrega de mais ambíguo, que é a um só tempo terrível e belo, dolorido e prazeroso – os adjetivos visam sempre a separar, a predicar, e essa tendência pela separação é superada com Dioniso; talvez a palavra grega Deilós (terrível, maravilhoso) seja capaz de conceder o valor fiel desta adjetivação, sua ambigüidade. Mas, bem mais que uma adjetivação, o deus Dioniso não permite uma substantivação ingênua. Deus da embriaguez, ele é o deus da ilusão, e a ilusão não vela, ela sim, desvela (Dioniso sempre inseparável de Apolo). A natureza sempre identificada como essa força imensa, relacionada às pulsões sexuais mais profundas (“onipotência sexual”), ela devolve a natureza perdida do homem. É neste sentido que a arte é entendida como cura, pois há nela um elemento catártico do encantamento, alcançado pela compreensão dionisíaca do mundo. Para Nietzsche, o homem atinge a sua máxima religiosidade quando toma para si o poder de criação, ou melhor, quando permite que seja ele o intermédio das forças da natureza para a criação. É neste sentido que o mito compreende a sua grandeza, e o Sátiro, criatura fictícia, revela-se como o verdadeiro homem. E por que o Sátiro é dito o verdadeiro homem? Como algo fictício pode vir a ser o verdadeiro?
Pois é onde o fictício e o real não se separam. Onde, o que este jovem Nietzsche chamou de ilusão, é o elemento que guia, onde o valor de verdade está identificado à criação, e não à certificação.
Tendo por base todos esses elementos de compreensão, a contraposição ao macaco mostra a sua força. O homem civilizado ao chegar à verdade do macaco enquanto proto-humano, o faz com o alto preço de ter perdido aquela força criadora e libertadora do Sátiro.
Mas afinal, o que é o macaco?
Todo homem moderno compreende que é o macaco o nosso ancestral. Mas esta colocação é ainda errônea do ponto de vista científico. Nós, da espécie humana, e os macacos, possuímos um ancestral em comum. Esse ancestral comum é o que chamam de “elo perdido”. O verdadeiro, deste ponto de vista, guarda-se através de uma longa cadeia evolutiva que conduz de volta, no tempo cronológico, à existência de espécies que puderam gerar o denominado homo sapiens. Nada temos a contestar do ponto de vista de sua certificação, portanto. Que o homem é um bípede originado de um ancestral em comum com os macacos, nada mais correto! Não levando em conta a própria semelhança, o que a asserção desta verdade nos oferece do ponto de vista filosófico é, entretanto, irrelevante. Para se chegar à verdade do macaco, perde-se a verdade do Sátiro: é precisamente isto o que Nietzsche naquelas passagens do Nascimento da Tragédia nos diz.
É como dizer que para o homem estar em verdadeiro contato para com a natureza, é preciso deixar falar uma voz encantadora que cobre do vivente nada mais que a força ativa de sua própria criação, afirmação. Nietzsche fala em um “fingido estado natural”. Como devemos compreender isto? Proponho pensarmos da seguinte maneira: que do ponto de vista teórico, a natureza não deve ser um problema, pois ela permanece intangível. Eis a diferença fundamental: querer a natureza para o criador é querer a si mesmo como natureza. Tal manifestação concentra-se na figura lendária do Sátiro. O homem grego se via no Sátiro. Por outro lado, de maneira incrivelmente distinta é querer a natureza como algo que parte já fora de si próprio, como um legado distante – um “elo perdido” -, muito se fala neste sentido contra os instintos: que o instinto é a herança animal em nós, que a animalidade é a bestialidade. Mas se pensarmos que o furor da técnica em nossos dias atuais, e sua incrível racionalidade, oferecem uma dominação e um controle na mesma medida em que gera o caos e a desordem, compreenderemos que a bestialidade não está do lado da animalidade, mas sim naquilo que constantemente se louva e se acredita identificar como o propriamente humano, como aquilo que lhe é qualitativamente superior: o cérebro.



[1] Cf HEIDEGGER, Martin. Sobre o Humanismo

quinta-feira, 10 de março de 2011

Enfim ele: Emil Cioran, o mártir da lucidez.

A decepção lhe encobre o rosto, lhe emudece a voz, mas a pena continua a pulsar, destemida, vibrante e desencantadoramente acida. Emil M. Cioran, filósofo romeno radicado na França, falou pouco publicamente durante sua vida, não acreditava nas palavras, mas, quase forçosamente (ou pelo menos, é isso que ele quer nos fazer acreditar), escrevia. Não era apenas descrença em relação à palavra, Cioran simplesmente achava que a atividade de nomear algo era inútil, era um sinal da pretensão e da fraqueza humana, da impossibilidade de viver e sentir o objeto nomeado em sua finitude exasperada, era um sinal de não saber lidar com o mundo em seu tenebroso devir, uma maneira de esquecer este devir. Como conseqüência dessa impossibilidade e da teimosia do homem em não percebê-la e obedecê-la, ou seja, criando as mais variadas teorias éticas, teológicas, ontológicas, até as teorias sociológicas, antropológicas e etc, o homem seria como um animal errante que pelo excesso de crença (inclusive nos conceitos mais racionais) ou de descrença (este seria o caso do homem contemporâneo), seguiria causando com grande maestria sua própria destruição. Por isso, Cioran trabalhou incessantemente na condenação de todos os sistemas de pensamento. Segundo o próprio:

Mas por outro lado ele reconhecia que era impossível ao homem não tentar nomear as coisas, não tentar forjar teorias de explicação do mundo e do devir, era instintiva no homem esta auto-sabotagem. Proclamando esta sabotagem e falando-nos de sua descrença, advinda de um olhar radicalmente lúcido para os acontecimentos humanos e a história do pensamento (como a citação acima deixa claro), ele escrevia. Este olhar e a escrita que ele gerou denunciava a incapacidade fundamental do homem chegar ao absoluto, incapacidade enraizada no seu próprio corpo. -Corpo, espaço aberto da degeneração e dos limites ordinários e nojentos dos homens-. Diante deste espaço, o corpo, e desta incapacidade, o que, segundo Cioran, seria o correto a fazer? Existiria algo efetivamente correto a ser feito?

A indiferença, a preguiça e a dúvida seriam as verdadeiras virtudes de um homem, só com estes sentimentos esta besta irreparável andaria sem causar tanta destruição. Nesse sentido ele chaga a fazer um elogio à letargia:

Assim, seguir escrevendo poderia tanto ser sinal da impossibilidade fundamental do homem, ou seja, tentar, pela mordaz ignorância arrogante, parar e rebaixar aquilo que não tinha e nunca terá nenhuma familiaridade com o nosso mundo errôneo (principalmente se pensarmos a crítica feita por ele aos escritores contemporâneos, que segundo ele, sempre escreviam de mais e não tinham mais nenhuma noção do absoluto, rebaixando a literatura ao lugar de dramas que, a partir, principalmente das novas disciplinas do saber -psicanálise, antropologia, sociologia e etc- tentavam tratar de tudo, mas não falavam essencialmente de coisa alguma), quanto demonstração da única maneira virtuosa de se viver em meio a esse redemoinho de fanatismo e sangue, a saber, a escrita lúcida e cética. Esta lucidez é diferente da consciência, que é pequena e tem relações históricas com a chegada de certo tipo de pensamento ao poder, digamos assim.

Aqui faço um pequeno corte, necessário, para focar, na crítica que citei acima, feita aos escritores contemporâneos. Este corte nos ajudará a definir melhor as diferentes formas de crítica que aparecem na obra do filósofo romeno, e consequentemente, o elogio a certa maneira de escrever.

A crítica ao pensamento contemporâneo é dupla. Primeiro questionando os fundamentos das novas disciplinas do saber, que, para Cioran, eram fundamentos imprecisos e pouco rigorosos, conseguindo, contudo, arrecadar inexplicavelmente tantas e tantas cabeças ao seu redor. Depois, colocando em questão os fins que justificariam os tais pensadores. De grosso modo Cioran ver uma semelhança fundamental entre escritores e pensadores contemporâneos. Todos eles se preocupavam demais com a vida humana e seu perpétuo melhoramento, esta havia se tornado a grande finalidade, numa postura marcadamente hedonista. O prazer carnal, a gastronomia, as disciplinas humanas, como já citamos acima, tudo isso era o sinal maior de uma decadência que havia começado na modernidade, com a fé nos conceitos, na racionalidade do homem. O mundo contemporâneo era o ápice do abatimento e do desprezo em relação às forças ‘superiores’ que moveriam o mundo.

“Quem, lúcido, se compreenda, se explique, se justifique e domine seus atos, jamais fará um gesto memorável.”

Podemos ver claramente que a diferença do pensamento antigo para o pensamento moderno e contemporâneo se dá no esvaziamento transcendental das novas disciplinas. Estas nunca tiveram como meta principal de seu projeto investigativo e conceitual atingir e viver o absoluto -o que de qualquer modo seria impossível, mas a entrega é sempre louvável e digna- antes, insistiam sempre em privilegiar o homem e o seu universo social como ponto de partida e chegada para as mais diversas digressões. O paradigma da consciência moderna vai progressivamente colocando o homem como centro e princípio, fechando os olhos para tudo que nos transpassa e determina. Usando um termo nietzschiano que vem bem a calhar, era o homem doente do homem, ou como o próprio Cioran dizia:

“Vivemos em um clima de esgotamento: o ato de criar, de forjar, de fabricar é menos significativo por si mesmo que pelo vazio, pela, pela queda que se segue a ele. Comprometido por nossos esforços sempre e inevitavelmente, o fundo divino e inesgotável situa-se fora do campo de nossos conceitos e de nossas sensações”

Como em qualquer outro homem, ou filósofo, todo esse filosofar amargurado e desiludidamente lúcido saia do seu próprio corpo. Esta é, aliás, uma especificidade interessante do Cioran. Ele dá a fisiologia um papel fundamental na sua filosofia, não é o primeiro nisso, mas parece ser o primeiro a marcar a influencia indispensável e negativa do corpo e suas debilidades para o caminho da sua filosofia, não como algo exterior, como um obstáculo à filosofia, mas como uma debilidade constituinte de todo patético filosofar.

Um dos aspectos da filosofia fisiológica do Cioran é a atenção que ele dispensa para a insônia. A insônia que lhe acompanhou desde sua adolescência até sua morte, foi fundamental em sua compreensão lúcida da vida. A insônia fez do jovem Cioran um transeunte soturno, passava noites e noites em claro vagando, primeiro, por sua cidade e logo depois por Paris, a cidade em que viveu toda sua vida adulta. Filosoficamente fundamental é a conseqüência da insônia, ela engendrou nele uma visão do tempo como algo imóvel. O que existia era a eternidade com suas diabruras, e o sono era uma dessas diabruras da eternidade, fazendo do homem este animal tão fácil de iludir. Dormia e tinha a ilusão de mudança, de recomeço, quando na verdade era só mais do mesmo, ou seja, a eternidade em seu movimento próprio e devir infindo.

Dessa visão da eternidade saída das madrugadas sem fim que a insônia lhe proporcionou, Cioran nos deu outro modo de pensar a história. Para ele a história não é linear e progressiva, era uma página de grandes tristezas e arroubos irrepetíveis de genialidade. Um povo tem seu espírito e ele irá se perpetuar até que aquele povo consiga degenerar este espírito. O homem, esse animal coletivo, cuja solidão, técnica de refinamento do espírito, lhe é imprópria, sempre exgarçarar a força que o criou, por utopias, as mais patéticas. Voltamos a afirmar, não tem outro jeito, até por que, como o próprio Cioran diz: “A lucidez completa é o nada”.

Assim como há os arroubos de genialidade, há também, por outro lado, momentos privilegiados onde podemos ver a formatação quase exata da decadência. Antes, porem, de nos depararmos com esses momentos, vamos rapidamente ver o que para o nosso autor vem a ser decadência: “Os mitos tornam-se novamente conceitos: é a decadência (...)”, ou ainda: “A decadência não é outra coisa senão o instinto tornado impuro pela ação da consciência.” Vemos com clareza a ligação feita entre progresso racional e decadência, a formalização do pensamento e a perda das intrigantes referências do absoluto nos jogaria no pequeno mundo das verdades demonstráveis, destituindo o mistério para no seu lugar colocar a prova, tudo se prova, todo argumento, tudo se iguala e enfraquece, decadência!

“E se busco a data mais mortificante para o orgulho do espírito, se percorro o inventário das intolerâncias, não encontro nada comparável a este ano de 529, no qual, por ordem de Justiniano, a escola de Atenas foi fechada. Uma vez oficialmente suprimido o direito à decadência, crer torna-se uma obrigação... Este é o momento mais doloroso na história da Dúvida.”

Diante dessa visão da história, como um sem fim de horrores, seria ridícula a idéia humana de designar um objetivo, uma finalidade, a todo este triste teatro que se desenrolará para sempre. Nós, contemporâneos não somos dignos nem dessa eternidade que nos espera, por desprezá-la, por louvarmos longa e fervorosamente a nossa mediocridade, por não querer sair da ilusão hedonista que vivemos. O homem moderno conquistou a liberdade, os direitos, a tranquilidade, mas o vazio é imenso, mais que o grande vazio, o que identificava o homem moderno é o esgotamento, a náusea e a sensação de inutilidade diante das conquistas modernas, todas demasiadamente carentes de absoluto, de transcendência, enfim, de uma força fundamental que fosse capaz de forjar e justificar sempre e de novo a existência humana, como foram, para Cioran, as obras de Homero, Bach e Shakespeare.

Para finalizar acho fundamental, ao menos, dois esclarecimentos. Um sobre algo que já está no texto, a saber, a pertinência, e até mesmo a positividade, da escrita em Cioran, o outro para tentar acalmar os mais apressados, aqueles que logo ligariam tal filosofia a um elogio ao suicídio.

Bem, para tentar jogar um pouco mais de luz à questão da escrita, acredito que como um bom pessimista e refinado blasfemador, Cioran escreve para dissolver tudo que for frágil no pensamento ocidental, para desdenhar e destituir a ilusão mesquinha e egoísta de progresso, por exemplo. Mesmo aquelas teorias mais consistentes podem sofrer um dano irreparável pelas mãos céticas, pelos olhos lúcidos e pelas gargalhadas desiludidas e sarcásticas deste que é uma dos maiores pessimista do sec XX. Ele escreve, por fim, para restituir a dúvida fundamental em todos os espaços desta sociedade fria e cheia de pequenas certezas, alargando os limites do pensamento. Essa tarefa é absolutamente positiva, diluir certezas seculares ou certezas pouco rigorosas é uma ótima forma de limpar o solo para pensamentos futuros, que se interesse em criar um mundo novo, tão forte quanto ele pode ser.

Chagamos ao fim da nossa pequena exposição sobre este que agora podemos chamar (talvez) com menos terror de mártir da lucidez.

Referêmcias Bibliográficas

Emil M. Cioran__Breviário da Decomposição.

História e Utopia

Silogismos da Amargura

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Comentário da obra "Esporas" de Derrida

Este texto de Derrida convém com toda uma prática pensante exercida pelos leitores de Nietzsche; ele se insere no encaminhamento de uma aproximação com a arte, de uma superação da moral dogmática cristã, em suma: de ver a vida sob a ótica que melhor lhe faça justiça, o que em todo caso este ver a vida já seja entendido também como um viver a vida. Talvez tal pleonasmo devesse, numa linguagem mais nietzscheana, ser dito como um querer a vida. Assim, me parece que entre os leitores de Nietzsche exista tal cumplicidade que, entretanto, só pode ser afirmada enquanto houver alguma divergência.
Derrida remete-se então ao tema da mulher, uma constante nos textos de Nietzsche, o qual por sua vez oferece argumentos para não duvidarmos que ela, a mulher, fosse uma preocupação central deste. Ou, melhor ainda, pela figura da mulher atinge-se uma questão que esteja sendo constantemente proposta e visada pelo filósofo alemão, o que em todo caso é ainda falar da mulher.
Mas – o tema, a princípio, não era a mulher. O subtítulo diz: os estilos de Nietzsche. Antes do subtítulo, o próprio título: Esporas.
Por que falar dos estilos de Nietzsche conduziu ao tema da mulher? E o que o nome Espora tem a ver com isso?

A questão do estilo: é sempre o exame, o peso de um objeto pontudo

E aqui temos do estilo à espora, o objeto pontudo, que em um só relance nos remete ao estilete (que pressupõe o estilo), ao punhal, a uma flecha; e também uma caneta, uma pena que escreve. Com isso alcança-se a dimensão do co-pertencimento: o texto e a escrita, significado e significante e, no caso deste texto, feminino e masculino.

Deixemos o élitro flutuar entre masculino e feminino.

O resultado desta flutuação é um novo encontro com esta distinção (que também é metafísica) entre o feminino e o masculino, passando em vista por um âmbito que não se limite ao que é somente masculino e feminino, i.é, é preciso que se apague essas duas figuras de oposição homem/mulher para que em algum momento possa-se novamente falar acerca da oposição, reconhecer homem e mulher; e para isto, foi, para o próprio Nietzsche, necessário fazer-se mulher.
Deveríamos aqui, concordes com a proposta do estilo, lembrarmos que a mais clássica concepção de filosofia, da palavra Filosofia e do agir filosófico, atém-se ao desejo, ao Eros. Toda a noção clássica da filosofia assenta-se sobre uma tarefa masculina, de desejantes. Deveríamos até mesmo dizer com esta proposição que, toda a nossa noção de masculino assenta-se sobre a filosofia, fundam-se um em outro, o masculino na filosofia e a filosofia no masculino (ou ao menos a uma vigência tal que se abre então uma possibilidade de masculino, esta, ocidental, do homem que conhece, que investiga a natureza, que escreve, que deseja a verdade). O resultado, ou seja, a mulher, seria a conseqüência, ou no máximo, um resultado simultâneo: só poderia haver esta mulher, porque existiram tais homens.
Entretanto, parece que a questão da mulher não é tão simples, ou não se limita apenas a este jogo de oposição; ao menos é o que quer Derrida, seguindo o rastro de Nietzsche na análise crítica da própria história, e da própria história da filosofia. Com relação a esta atividade, a de filósofo, a mulher é associada à verdade e estimada por ele. Mas, por outro lado, na medida em que os filósofos a queria o maximamente possível, não a tinha ou a tinha somente como ausência, por se posicionarem de maneira inábil neste jogo de sedução. Tem-se aí a mulher associada à própria vida, que na medida em que desejada, requer uma dinâmica, uma fluência e não dogmatismo, rigidez. Esse é o sintoma da vontade de verdade, uma vontade de vida em degeneração, que se sente fraca, que quer conservar-se e por isso, já de antemão nega a vida ainda desejando-a, pois separou vida e morte, e no que separou foge da morte no modo da conservação e perde a promessa de vida que aceita a morte em iminência. Talvez, se quiséssemos ser ainda um pouco fixos, ou dogmáticos, poderíamos ao invés de usar os termos morte e vida, os termos conservação e aniquilação, sendo o primeiro uma vontade de vida que se esvai, e o segunda uma vontade de vida que aceita a mais profunda adversidade, e por isso aceita a própria vida e seu risco mortal. Entretanto, esta própria vontade de vida mantém-se mais dinâmica e, portanto, separá-la nos termos conservação e aniquilação é ainda reduzi-la. Esta é uma evidência que a própria vida ensina. Onde repousa o critério de avaliação da vida? Creio que até mesmo os tipos apontados por Nietzsche como os mais decadentes, se perguntados, responderiam estarem afirmando a vida, fossem quem fosse, desde um sacerdote a um atleta ou artista, todos estão respondendo à vida desde onde podem responder e naquilo pelo qual eles próprios são capazes de responder.
Cito uma frase de Heidegger, interpretando o próprio conceito de vontade de poder:

Tudo que vem ao encontro é interpretado em função do poder de viver do vivente.

Será que por isso Heidegger apontou que a saída de Nietzsche foi a inversão da metafísica? Inverte-la para encontrar uma saída dela própria, uma vez que grande parte dos escritos de Nietzsche diagnosticava a decadência da cultura, a decadência da Europa, a decadência do homem. Inverter a metafísica para encontrar uma saída dela própria, isto é auto-evidente; parece que o próprio Nietzsche fez isso ficar claro, ainda que seja uma polêmica localizar precisamente onde se instala o “giro para fora”.
Mas devemos voltar à mulher, pois é a questão do texto. A mulher que vinha associada à verdade e à vida. No capítulo “Posições”, Derrida procura reduzir a um número finito de proposições típicas como intuito de formalizar a regra; tais enunciados são também preposições fundamentais e posições de valor (lembro-me do texto do Roberto Machado, Zaratustra: tragédia nietzscheana, em que dizia que a filosofia de Nietzsche é uma filosofia da avaliação).
Creio que o texto de Derrida permita que seja encontrada uma tensão entre essas figuras históricas - a mulher castrada, o filósofo dogmático -, e algo que permanece fora (além) da história - a vida, Dionísio. Estes dois são constantemente confrontado por aqueles, as figuras singulares e históricas. Neste sentido, as três mulheres apontadas por Derrida correspondem a cada uma dessas expectativas, onde na primeira ela não é reconhecida, na segunda é reconhecida e condenada, e na terceira é reconhecida e afirmada. Ora, para haver uma virada do segundo ao terceiro, a expectativa que antes negava a mulher, agora torna-se criadora, funde-se para além da dupla negação e com isto funde-se também a oposição masculino/feminino, onde feminino era sempre não-masculino.
Funde-se, o criador é também mulher na medida em que afirma. Nietzsche se comparando a uma fêmea de elefante na ocasião da “gestação” de seu Zaratustra é a imagem adequada para a ocasião. E também, o próprio estilo, ou os estilos, remetem a Nietzsche uma vontade criadora, que não se preocupava apenas em falar, mas em como falar, de tal maneira que seus estilos pressupõem uma preocupação não com método, ou não apenas com método, mas também com a forma. Uma fundição entre filosofia e arte.
A vontade criadora é, segundo a avaliação de Nietzsche, uma vontade potente, uma afirmação da vida. E também uma superação, a superação da metafísica (tradicional); com isso creio que o texto de Heidegger, A Inversão nietzscheana do platonismo, faça justiça à proposta de Nietzsche.

***

De Nietzsche a Heidegger a minha ressalva subsiste timidamente a uma questão em que, na medida que me pergunto vejo e acredito haver uma resposta que, então, abre toda uma série de outras questões. Ela repousa na passagem que se faz do conceito Vontade de Poder ao conceito de Ser. Se é evidente que ambas digam o mesmo, não teria sido nunca necessário fazer tal transição de uma palavra a outra; entretanto, Heidegger o fez. O que ele queria com isto? A resposta não convém aqui neste texto, mas acredito que tenha a ver com uma volta à questão primeira da filosofia, remetida aos primeiros pensadores (pré-socráticos) e à palavra grega, o que por si só já traz inerente uma concepção da história pelo próprio Heidegger, que vê todo o movimento ocidental circular no âmbito do “esquecimento do Ser”. Não sem propósito, o texto de Derrida termina justamente citando uma passagem de Heidegger acerca do “esquecimento”.
De alguma maneira, o esquecimento possui relação com a verdade e também com o outro, alteridade; de modo que, verdade e outro podem ser também a mulher. Em todo caso, para Heidegger, o esquecimento é consubstancial ao Ser, vige à sua própria essência. Por essas e por outras razões, penso que a filosofia da diferença, enquanto proposta de pensar o outro, dirige-se em sua possibilidade mais positiva pelo esquecimento do Ser, falando de maneira heideggeriana. Mas esta é uma questão...

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Egoísmo vs Altruísmo

As categorias egoísmo e altruísmo só existem em um âmbito reacionário. São utilizados sempre para cobrir uma incompreensão; quero dizer: não existem. O que geralmente se aponta na figura do egoísmo, a ação egoísta, é algo inextinguível e igualmente indecidível: a de que todo movimento parte do mesmo, e que por mais que seja sempre um projetar, e que sendo um pro-jetar supõe-se um outro, o mesmo não pode ser suprimido, pois já toma parte do movimento, podendo ser considerado o próprio movente do movimento, ainda que a própria identificação do movente enquanto movente seja um problema de larga escala, um problema filosófico. Pois seja, o mesmo não é o ego (o eu), portanto não poderia ser egoísmo. Sempre me pergunto: quando foi que o mesmo se tornou eu, e toda uma concepção filosófica foi ignorantemente antropologizada, esquecendo-se também que o homem em questão é histórico, local, transitório? Mas, a vigência desta possibilidade não é vista como possibildade, e o agente deste resultado acredita estar em um espaço privilegiado. A partir disto quis interpretar todas as coisas sob a ótica que é somente sua, i. é, ele reduz todas as coisas ao seu campo de visão. Com isso, a maneira de lidar com questões clássicas da filosofia é remetido a um contexto muito menos amplo, o mesmo se torna eu, a ação se torna efetivação: acredita-se alcançar a verdade, mas - que ironia -, a verdade se perdeu. Egoísmo e altruísmo são a operação desta perda. Toda a ação é subestimada, toda a graça e o entusiasmo da vontade é personalizado, torna-se causal, determinável (ou pretende-se ser), e estas que são a atitude egoísta vs altruísta são finalmente separadas, como quem quer separar o bem do mal. Ora, o movimento que quer, quer a si mesmo, não importa se seja deixando o outro ser outro, se indo de encontro a ele; uma coisa é certa: outro não supõe, tal qual o mesmo, um âmbito antropológico apenas. Outro é o inindentificável, que sejam as forças do acaso, que sejam o que não se está pensando agora, são tudo aquilo que escapa, em suma: tudo; tudo que está para além da vontade. Supondo-se evidentemente que nem a própria vontade seja condenável ao âmbito antropológico Por um problema lógico deveria ter-se dispensado as categorias egoísmo/altruísmo, porém trata-se de dispensá-las por uma razão muito maior: estas categorias não existem.
Quem é o altruísta? É, sob a lógica dessa categorização, o mais egoísta. Porém, estas categorias só existem para que isso não seja visto; para negar toda vontade, para domesticá-la, normatizá-la.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Gianni Vattimo e o Niilismo

Gianni Vattimo, filósofo contemporâneo, funda o ‘pensamento fraco’. Numa atitude, assumidamente, hermenêutica e niilista, ele propõe uma retomada da filosofia pela escuta da historia do ser heideggeriano, da perda dos fundamentos fortes da metafísica no processo iniciado com Nietzsche, e de uma hermenêutica que entende a história da filosofia do ocidente como enfraquecimento do ser. O Niilismo é fundamental para Váttimo, primeiro porque é a questão maior do nosso tempo, depois, porque é ele mesmo quem vai possibilitar responder com liberdade e criatividade ao problema do relativismo e da aniquilação de fundamentos, sem voltar para nenhuma visão totalizadora. Ou seja, Vattimo, assim como Nietzsche, assume o niilismo como chance, única chance, ele diz, contra o próprio niilismo.
Para não perder as conquistas da filosofia em seu gesto mais violento, a saber, a destruição de todo e qualquer fundamento metafísico feito pelo pensamento nietzschiano e sua posterior afirmação de amor à vida trágica, Vattimo assume o niilismo e caminha com ele, com a hermenêutica e com a história do ser para uma nova racionalidade.
Uma racionalidade que não era mais a racionalidade forte dos fundamentos e da verdade. O desejo por esta nova racionalidade é pensado como alicerce do 'pensamento fraco' e ele, como alicerce para o sucesso dela frente ao relativismo anêmico e suicida da contemporaneidade.
Há questões fundamentais, para Vattimo, que compõem estes dois temas. Estas questões são, a descoberta, feita por Nietzsche, da ligação entre pensamento metafísico e modos de controle e poder. A não obrigatoriedade de se pensar, em oposição a esta ligação, teorias que queiram libertar o sujeito de um possível sujeição. O contrário de tal desejo, ou seja, a possibilidade de convivência harmônica, mas não obediente, em que se perceba que esta ligação é uma convenção e que, por meio de um consenso advindo desta nova racionalidade, podem se repensadas de maneira positiva, sem o peso do fundacionismo metafísico. A vivencia do ser como acontecer e refletir à meia luz, um ser que saiba ser acontecimento no estado enfraquecido em que nos encontramos. O niilismo, porque nega a força, que é afinal o fundamento de toda metafísica, ou seja, citando o próprio Vattimo, nega a "força que o próprio pensamento sempre se atribuiu, em nome do seu acesso privilegiado ao ser enquanto fundamento" (Pier Aldo Rovati e Gianni Vattimo, O Pensamento fraco, prefácio) e se coloca em uma atitude de questionamento constante. E, por fim a recolocação da ligação entre ser e linguagem sendo pensada agora como transmissão de uma história do ser para uma história do enfraquecimento do ser, que é, afinal, para Vattimo, a única história possível de ser feita, distorcida e transmitida dentro da filosofia ocidental.
Há em Vattimo, como acabamos de ver, pressupostos para o seu filosofar, a maneira de se relacionar com estes pressupostos é tão importante quanto eles mesmos. A hermenêutica niilista, método utilizado por Vattimo, é o pensamento que se instala nas ruínas da filosofia e com uma atitude de respeito, escuta e distorção, promove e propaga o pensamento fraco.
Respeito porque ele filosofará sempre a partir destas ruínas, porque será sempre um repensar da e na odisséia filosófica. A escuta tem relação direta com este respeito, só que ganha em relação ao desvelamento do ser, que agora nada mais é. Desvelamento que nunca acontece por inteiro, sempre é parcial, é preciso então atenção e escuta. Distorção é a uma das partes ativas da ontologia fraca e niilista de Vattimo, pois que, ela é a possibilidade de uso de conceitos metafísicos em seu enfraquecimento, colocando-os agora em serviço desta sua filosofia da ‘meia luz’ contra a luminosidade da metafísica.
O termo meia luz, tirado do texto do próprio Váttimo, é perfeito para falarmos deste pensamento que usa, com toda propriedade do horizonte pós-metafísico, os termos e temas da tradição contra ela mesma. Ou seja, um ultrapassamento que sempre mantém. Nunca abandona nada, sempre considera estes termos, conceitos e temas sendo constitutivos de seu passado, como referências que vão ser sempre reencontradas e pensadas como “dados do destino, no sentido de envio” (Rosano Pecoraro, Niilismo e pós-modernidade – Introdução ao pensamento Fraco de Gianni vattimo).
Tentando sintetizar o ‘pensamento fraco’ dizemos, trata-se de um pensamento de herança e distorção(distorção como remeter-se, é assim a tradução da palavra distorção para o italiano, e Vattimo aproveita tal aproximação, entre distorção e remeter-se para falar mais uma vez de algo que será sempre repensado, já que é constituinte. Mas, sempre é bom lembra que tais termos, conceitos ou temas serão repensados) da tradição filosófica como enfraquecimento do ser no horizonte niilista pós-moderno. Para superar este horizonte Vattimo pede que esta herança seja aceita em sua grandeza de ruína como único lugar de onde podemos falar articuladamente, já incluída ai uma nova racionalidade e certa idéia de consenso histórico cultural, contra este niilismo. A aceitação desta herança pressupõe, inevitavelmente, a aceitação da religião cristã. Religião que é fundada, como observa Vattimo, positivamente, sob o signo da interpretação de um livro e da fraqueza de Deus, ou seja, sua encarnação. Ter-se feito homem e habitado entre nós é o sinal desta fraqueza que Vattimo ver em toda a história da cultura ocidental, desde ai.
Depois desta pequena incursão no pensamento vattiminiano, é necessário, para fazer jus ao esforço anti-metafísico do próprio Vattimo, colocar alguns questões:
Será que Vattimo não cai em uma filosofia do mesmo, e, se assim for, volta a fundamentos metafísicos por não conseguir desestruturar isto que é próprio dele, a saber, seu fechamento em si mesmo, seu machismo, seu eurocentrismo, humanismo, ou para usarmos o termo correto, seu fundamentalismo?
Qual, então, é a real relevância da filosofia de Vattimo para nós brasileiros que sempre falamos apartir de outras línguas e culturas? Para nós que somos formados por culturas em que o Deus, único e perfeito, não chegou nem a nascer, quem dirá a morrer? Para nós que somos emoldurados por uma série de outros. Até onde essa filosofia nos serve, nos acolhe?
Fica claro que qualquer filosofia que queira ser uma resposta ao niilismo, sem recair nos fundamentos metafísicos, deve sempre se valer de uma abertura ao outro em sua radicalidade, pois, só assim percorrerá o movimento que estrutura toda questão, a saber, a não aceitação das definições supremas que sempre afasta o outro e funda todo fundamento metafísico.
Para concluir devo dizer que desconfio fortemente da precariedade e parcialidade das questões e, possíveis, hipóteses que levantei aqui. Mas ainda assim me parece ter, este discurso, percorrido parte de um caminho fundamental para pensar, com menos fatalismo e desespero, aquilo que coloquei no início: o que pode e deve fazer a filosofia de hoje, como ela se insere e como ela pode buscar o para alem do niilismo contemporâneo.

domingo, 21 de março de 2010

Prova de mestrado (para não ganhar bolsa)

A questão do conhecimento desde muito cedo surgiu como problema para a filosofia. Afinal, é a sabedoria um conhecimento? Existem, com relação ao conhecimento, inúmeras questãos intrínsecas, o que no mérito do fato, diz respeito ao próprio filosofar, e em termos relacionáveis, diz respeito também ao que é a verdade.
Não caberá aqui um esboço acerca do que são filosofia, verdade e conhecimento para a filosofia antiga e as posteriores nuances que estes sofrem nos outros períodos históricos. Pretendo apenas esboçar, ou tentar esboçar, a interpretação de Heidegger para essas questões. E isto de maneira indireta, perpassa sua crítica à modernidade -sobretudo àquelas questões acerca da objetividade - e a sua recolocação da ontologia.
Heidegger sabiamente aponta que antecipadamente a toda colocação ôntica, vigora uma questão ontológica. O que está em questão sempre é o ser, mas não propriamente, ou apenas, o ser do ente ao qual a cada vez nos voltamos, mas àquele ser que se está sendo naquele olhar para o ente, naquela participação ou co-pertença que diz acerca de um ente qualquer. Isto é o que se convencionou como ver em perspectiva, e é de inspiração fenomenológica. A fenomenologia chamou a atenção para como se "olha" as coisas, ela propriamente se interessa pela relação, afinal aquilo que se diz acerca de um ente externo, diz muito acerca de quem diz. A nuance, ou a mudança, que se adquire da fenomenologia de Husserl para a ontologia de Heidegger, pouco ou quase nada nos interessa aqui. Pois com o que foi dito acima, já podemos alcançar a crítica de Heidegger à modernidade, ou mais especificamente, a maneira como a modernidade tratou o conhecimento.
A etimologia da palavra conhecimento (gnosiologia), tanto em grego quanto em latim dizem coisas muito próximas: elas falam de nascer, de geração. Não quero com isso ignorar toda possível crítica de Heidegger às traduções latinas, mas apenas lembrar que toda a modernidade fala e faz do conhecimento algo bem diverso do que essas duas palavras possivelmente dizem.
A partir da leitura de Heidegger, apontarei duas críticas:
A primeira se trata da estrutura proposicional. Esta se sustenta na divisão sujeito/predicado. Ela é, obviamente, uma estrutura usual, toda a linguagem se assenta sobre esta dualidade. Porém, o lugar onde esta dualidade tributa sua origem não é dual, quer dizer, sujeito e predicado se co-pertencem mutuamente, e o lugar desta origem diz respeito a uma possibilidade aberta e tornada usual, e isto passa despercebido na prática que se faz da verdade ligada à representação. Representação diz justamente de algo que não está presente, que está separado (p.ex. a relação sujeito/objeto), e a verdade da modernidade é a verdade desta separação.
A segunda crítica diz respeito à causação ôntica. Curiosamente, esta crítica também aponta para a não-presença dos dados, daquilo que a ciência toma para si como conhecimento. Quer dizer, um corpo humano são um conjunto de células e órgãos, o resultado de composições químicas e físicas ou a inteiração psicossomática de um sujeito específico? Este cálculo inadequado dos efeitos se anulam, não dizem, pois não apontam para o que vige, isto é, para a presença. Percorrendo o caminho inverso do devir, elas encontram algo não essencial da presença, algo que sobrevenha como precaução ou mesmo substituição. Com esta crítica não se quer eliminar toda esta forma de proceder, mas apenas ganhar o que porventura perdeu-se na busca da sabedoria. E isto diz respeito ao deixar ser, à presença como finitude, e ao aspecto não-causal da existência.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

'Eu gostava de poesia, só depois fui me aproximar da ficção'

Sangue na cidade. Alguém sai pela noite e corta a língua das pessoas, sempre a noite, pois é a noite que toda a profundidade se esvai e só resta uma fresta de luz decepcionada para se aventurar e se esconder.
Várias línguas já haviam sido cortadas. O sol trazia atônito, mais um dia com ruas cheias de línguas e, ao seu redor, poças de sangue, numa cidade cada vez mais espantada. O crime monstruoso chocava a todos, mas era sempre um choque tardio, pois que, sem língua, tudo era só grito e todo grito era previsto.
Letargia.
O choque se desdobrava em vazio horizontal, suicídios e, às vezes, risadas tristes ou alegres.
Domingo, 23, ocorreu algo diferente, diferente. Diferente.
Os bois comeram alguns homens. O cinema voltou a ser adocicado e rupestre, mais do que tudo, os anjos, os anjos fodiam entre si, e cada foda era água nova pela assexualidade trazida pela resposta negativa de cada foda, mas essa água se dividia em duas no seu esporro, vindo da dor no membro inexistente. Essa água era dupla desmedida que se fazia cristalina, e outra além de negativa, uma cachoeira/hidrante-aberto-por-pivetes era o que saia dos anjos desiludidos. Pronto, anjos que queriam água espessa (cachoeira/hidrante-aberto-por-pivetes), seriam agora camundongos hipertensos, para sempre insatisfeitos.
Os vermes habitavam os restos das línguas dentro das bocas, agora, apodrecidas da gente da cidade. Ainda assim, o nariz inventava um som. Era um som grande e forte de nozes e dos vermes que estavam na língua e, de vez em quando, subiam da boca ao nariz. Talvez fizessem isso pelo som metafórico e voador que sai do nariz, talvez quisessem voar, talvez quisessem ser metáforas voadoras, talvez quisessem apenas se precipitar, em todos os casos estavam no som.
A cidade o prédio o mar, que devorou os anjos, não todos, só alguns.