Este texto de Derrida convém com toda uma prática pensante exercida pelos leitores de Nietzsche; ele se insere no encaminhamento de uma aproximação com a arte, de uma superação da moral dogmática cristã, em suma: de ver a vida sob a ótica que melhor lhe faça justiça, o que em todo caso este ver a vida já seja entendido também como um viver a vida. Talvez tal pleonasmo devesse, numa linguagem mais nietzscheana, ser dito como um querer a vida. Assim, me parece que entre os leitores de Nietzsche exista tal cumplicidade que, entretanto, só pode ser afirmada enquanto houver alguma divergência.
Derrida remete-se então ao tema da mulher, uma constante nos textos de Nietzsche, o qual por sua vez oferece argumentos para não duvidarmos que ela, a mulher, fosse uma preocupação central deste. Ou, melhor ainda, pela figura da mulher atinge-se uma questão que esteja sendo constantemente proposta e visada pelo filósofo alemão, o que em todo caso é ainda falar da mulher.
Mas – o tema, a princípio, não era a mulher. O subtítulo diz: os estilos de Nietzsche. Antes do subtítulo, o próprio título: Esporas.
Por que falar dos estilos de Nietzsche conduziu ao tema da mulher? E o que o nome Espora tem a ver com isso?
A questão do estilo: é sempre o exame, o peso de um objeto pontudo
E aqui temos do estilo à espora, o objeto pontudo, que em um só relance nos remete ao estilete (que pressupõe o estilo), ao punhal, a uma flecha; e também uma caneta, uma pena que escreve. Com isso alcança-se a dimensão do co-pertencimento: o texto e a escrita, significado e significante e, no caso deste texto, feminino e masculino.
Deixemos o élitro flutuar entre masculino e feminino.
O resultado desta flutuação é um novo encontro com esta distinção (que também é metafísica) entre o feminino e o masculino, passando em vista por um âmbito que não se limite ao que é somente masculino e feminino, i.é, é preciso que se apague essas duas figuras de oposição homem/mulher para que em algum momento possa-se novamente falar acerca da oposição, reconhecer homem e mulher; e para isto, foi, para o próprio Nietzsche, necessário fazer-se mulher.
Deveríamos aqui, concordes com a proposta do estilo, lembrarmos que a mais clássica concepção de filosofia, da palavra Filosofia e do agir filosófico, atém-se ao desejo, ao Eros. Toda a noção clássica da filosofia assenta-se sobre uma tarefa masculina, de desejantes. Deveríamos até mesmo dizer com esta proposição que, toda a nossa noção de masculino assenta-se sobre a filosofia, fundam-se um em outro, o masculino na filosofia e a filosofia no masculino (ou ao menos a uma vigência tal que se abre então uma possibilidade de masculino, esta, ocidental, do homem que conhece, que investiga a natureza, que escreve, que deseja a verdade). O resultado, ou seja, a mulher, seria a conseqüência, ou no máximo, um resultado simultâneo: só poderia haver esta mulher, porque existiram tais homens.
Entretanto, parece que a questão da mulher não é tão simples, ou não se limita apenas a este jogo de oposição; ao menos é o que quer Derrida, seguindo o rastro de Nietzsche na análise crítica da própria história, e da própria história da filosofia. Com relação a esta atividade, a de filósofo, a mulher é associada à verdade e estimada por ele. Mas, por outro lado, na medida em que os filósofos a queria o maximamente possível, não a tinha ou a tinha somente como ausência, por se posicionarem de maneira inábil neste jogo de sedução. Tem-se aí a mulher associada à própria vida, que na medida em que desejada, requer uma dinâmica, uma fluência e não dogmatismo, rigidez. Esse é o sintoma da vontade de verdade, uma vontade de vida em degeneração, que se sente fraca, que quer conservar-se e por isso, já de antemão nega a vida ainda desejando-a, pois separou vida e morte, e no que separou foge da morte no modo da conservação e perde a promessa de vida que aceita a morte em iminência. Talvez, se quiséssemos ser ainda um pouco fixos, ou dogmáticos, poderíamos ao invés de usar os termos morte e vida, os termos conservação e aniquilação, sendo o primeiro uma vontade de vida que se esvai, e o segunda uma vontade de vida que aceita a mais profunda adversidade, e por isso aceita a própria vida e seu risco mortal. Entretanto, esta própria vontade de vida mantém-se mais dinâmica e, portanto, separá-la nos termos conservação e aniquilação é ainda reduzi-la. Esta é uma evidência que a própria vida ensina. Onde repousa o critério de avaliação da vida? Creio que até mesmo os tipos apontados por Nietzsche como os mais decadentes, se perguntados, responderiam estarem afirmando a vida, fossem quem fosse, desde um sacerdote a um atleta ou artista, todos estão respondendo à vida desde onde podem responder e naquilo pelo qual eles próprios são capazes de responder.
Cito uma frase de Heidegger, interpretando o próprio conceito de vontade de poder:
Tudo que vem ao encontro é interpretado em função do poder de viver do vivente.
Será que por isso Heidegger apontou que a saída de Nietzsche foi a inversão da metafísica? Inverte-la para encontrar uma saída dela própria, uma vez que grande parte dos escritos de Nietzsche diagnosticava a decadência da cultura, a decadência da Europa, a decadência do homem. Inverter a metafísica para encontrar uma saída dela própria, isto é auto-evidente; parece que o próprio Nietzsche fez isso ficar claro, ainda que seja uma polêmica localizar precisamente onde se instala o “giro para fora”.
Mas devemos voltar à mulher, pois é a questão do texto. A mulher que vinha associada à verdade e à vida. No capítulo “Posições”, Derrida procura reduzir a um número finito de proposições típicas como intuito de formalizar a regra; tais enunciados são também preposições fundamentais e posições de valor (lembro-me do texto do Roberto Machado, Zaratustra: tragédia nietzscheana, em que dizia que a filosofia de Nietzsche é uma filosofia da avaliação).
Creio que o texto de Derrida permita que seja encontrada uma tensão entre essas figuras históricas - a mulher castrada, o filósofo dogmático -, e algo que permanece fora (além) da história - a vida, Dionísio. Estes dois são constantemente confrontado por aqueles, as figuras singulares e históricas. Neste sentido, as três mulheres apontadas por Derrida correspondem a cada uma dessas expectativas, onde na primeira ela não é reconhecida, na segunda é reconhecida e condenada, e na terceira é reconhecida e afirmada. Ora, para haver uma virada do segundo ao terceiro, a expectativa que antes negava a mulher, agora torna-se criadora, funde-se para além da dupla negação e com isto funde-se também a oposição masculino/feminino, onde feminino era sempre não-masculino.
Funde-se, o criador é também mulher na medida em que afirma. Nietzsche se comparando a uma fêmea de elefante na ocasião da “gestação” de seu Zaratustra é a imagem adequada para a ocasião. E também, o próprio estilo, ou os estilos, remetem a Nietzsche uma vontade criadora, que não se preocupava apenas em falar, mas em como falar, de tal maneira que seus estilos pressupõem uma preocupação não com método, ou não apenas com método, mas também com a forma. Uma fundição entre filosofia e arte.
A vontade criadora é, segundo a avaliação de Nietzsche, uma vontade potente, uma afirmação da vida. E também uma superação, a superação da metafísica (tradicional); com isso creio que o texto de Heidegger, A Inversão nietzscheana do platonismo, faça justiça à proposta de Nietzsche.
***
De Nietzsche a Heidegger a minha ressalva subsiste timidamente a uma questão em que, na medida que me pergunto vejo e acredito haver uma resposta que, então, abre toda uma série de outras questões. Ela repousa na passagem que se faz do conceito Vontade de Poder ao conceito de Ser. Se é evidente que ambas digam o mesmo, não teria sido nunca necessário fazer tal transição de uma palavra a outra; entretanto, Heidegger o fez. O que ele queria com isto? A resposta não convém aqui neste texto, mas acredito que tenha a ver com uma volta à questão primeira da filosofia, remetida aos primeiros pensadores (pré-socráticos) e à palavra grega, o que por si só já traz inerente uma concepção da história pelo próprio Heidegger, que vê todo o movimento ocidental circular no âmbito do “esquecimento do Ser”. Não sem propósito, o texto de Derrida termina justamente citando uma passagem de Heidegger acerca do “esquecimento”.
De alguma maneira, o esquecimento possui relação com a verdade e também com o outro, alteridade; de modo que, verdade e outro podem ser também a mulher. Em todo caso, para Heidegger, o esquecimento é consubstancial ao Ser, vige à sua própria essência. Por essas e por outras razões, penso que a filosofia da diferença, enquanto proposta de pensar o outro, dirige-se em sua possibilidade mais positiva pelo esquecimento do Ser, falando de maneira heideggeriana. Mas esta é uma questão...
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