A decepção lhe encobre o rosto, lhe emudece a voz, mas a pena continua a pulsar, destemida, vibrante e desencantadoramente acida. Emil M. Cioran, filósofo romeno radicado na França, falou pouco publicamente durante sua vida, não acreditava nas palavras, mas, quase forçosamente (ou pelo menos, é isso que ele quer nos fazer acreditar), escrevia. Não era apenas descrença em relação à palavra, Cioran simplesmente achava que a atividade de nomear algo era inútil, era um sinal da pretensão e da fraqueza humana, da impossibilidade de viver e sentir o objeto nomeado em sua finitude exasperada, era um sinal de não saber lidar com o mundo em seu tenebroso devir, uma maneira de esquecer este devir. Como conseqüência dessa impossibilidade e da teimosia do homem em não percebê-la e obedecê-la, ou seja, criando as mais variadas teorias éticas, teológicas, ontológicas, até as teorias sociológicas, antropológicas e etc, o homem seria como um animal errante que pelo excesso de crença (inclusive nos conceitos mais racionais) ou de descrença (este seria o caso do homem contemporâneo), seguiria causando com grande maestria sua própria destruição. Por isso, Cioran trabalhou incessantemente na condenação de todos os sistemas de pensamento. Segundo o próprio:
Mas por outro lado ele reconhecia que era impossível ao homem não tentar nomear as coisas, não tentar forjar teorias de explicação do mundo e do devir, era instintiva no homem esta auto-sabotagem. Proclamando esta sabotagem e falando-nos de sua descrença, advinda de um olhar radicalmente lúcido para os acontecimentos humanos e a história do pensamento (como a citação acima deixa claro), ele escrevia. Este olhar e a escrita que ele gerou denunciava a incapacidade fundamental do homem chegar ao absoluto, incapacidade enraizada no seu próprio corpo. -Corpo, espaço aberto da degeneração e dos limites ordinários e nojentos dos homens-. Diante deste espaço, o corpo, e desta incapacidade, o que, segundo Cioran, seria o correto a fazer? Existiria algo efetivamente correto a ser feito?
A indiferença, a preguiça e a dúvida seriam as verdadeiras virtudes de um homem, só com estes sentimentos esta besta irreparável andaria sem causar tanta destruição. Nesse sentido ele chaga a fazer um elogio à letargia:
Assim, seguir escrevendo poderia tanto ser sinal da impossibilidade fundamental do homem, ou seja, tentar, pela mordaz ignorância arrogante, parar e rebaixar aquilo que não tinha e nunca terá nenhuma familiaridade com o nosso mundo errôneo (principalmente se pensarmos a crítica feita por ele aos escritores contemporâneos, que segundo ele, sempre escreviam de mais e não tinham mais nenhuma noção do absoluto, rebaixando a literatura ao lugar de dramas que, a partir, principalmente das novas disciplinas do saber -psicanálise, antropologia, sociologia e etc- tentavam tratar de tudo, mas não falavam essencialmente de coisa alguma), quanto demonstração da única maneira virtuosa de se viver em meio a esse redemoinho de fanatismo e sangue, a saber, a escrita lúcida e cética. Esta lucidez é diferente da consciência, que é pequena e tem relações históricas com a chegada de certo tipo de pensamento ao poder, digamos assim.
Aqui faço um pequeno corte, necessário, para focar, na crítica que citei acima, feita aos escritores contemporâneos. Este corte nos ajudará a definir melhor as diferentes formas de crítica que aparecem na obra do filósofo romeno, e consequentemente, o elogio a certa maneira de escrever.
A crítica ao pensamento contemporâneo é dupla. Primeiro questionando os fundamentos das novas disciplinas do saber, que, para Cioran, eram fundamentos imprecisos e pouco rigorosos, conseguindo, contudo, arrecadar inexplicavelmente tantas e tantas cabeças ao seu redor. Depois, colocando em questão os fins que justificariam os tais pensadores. De grosso modo Cioran ver uma semelhança fundamental entre escritores e pensadores contemporâneos. Todos eles se preocupavam demais com a vida humana e seu perpétuo melhoramento, esta havia se tornado a grande finalidade, numa postura marcadamente hedonista. O prazer carnal, a gastronomia, as disciplinas humanas, como já citamos acima, tudo isso era o sinal maior de uma decadência que havia começado na modernidade, com a fé nos conceitos, na racionalidade do homem. O mundo contemporâneo era o ápice do abatimento e do desprezo em relação às forças ‘superiores’ que moveriam o mundo.
“Quem, lúcido, se compreenda, se explique, se justifique e domine seus atos, jamais fará um gesto memorável.”
Podemos ver claramente que a diferença do pensamento antigo para o pensamento moderno e contemporâneo se dá no esvaziamento transcendental das novas disciplinas. Estas nunca tiveram como meta principal de seu projeto investigativo e conceitual atingir e viver o absoluto -o que de qualquer modo seria impossível, mas a entrega é sempre louvável e digna- antes, insistiam sempre em privilegiar o homem e o seu universo social como ponto de partida e chegada para as mais diversas digressões. O paradigma da consciência moderna vai progressivamente colocando o homem como centro e princípio, fechando os olhos para tudo que nos transpassa e determina. Usando um termo nietzschiano que vem bem a calhar, era o homem doente do homem, ou como o próprio Cioran dizia:
“Vivemos em um clima de esgotamento: o ato de criar, de forjar, de fabricar é menos significativo por si mesmo que pelo vazio, pela, pela queda que se segue a ele. Comprometido por nossos esforços sempre e inevitavelmente, o fundo divino e inesgotável situa-se fora do campo de nossos conceitos e de nossas sensações”
Como em qualquer outro homem, ou filósofo, todo esse filosofar amargurado e desiludidamente lúcido saia do seu próprio corpo. Esta é, aliás, uma especificidade interessante do Cioran. Ele dá a fisiologia um papel fundamental na sua filosofia, não é o primeiro nisso, mas parece ser o primeiro a marcar a influencia indispensável e negativa do corpo e suas debilidades para o caminho da sua filosofia, não como algo exterior, como um obstáculo à filosofia, mas como uma debilidade constituinte de todo patético filosofar.
Um dos aspectos da filosofia fisiológica do Cioran é a atenção que ele dispensa para a insônia. A insônia que lhe acompanhou desde sua adolescência até sua morte, foi fundamental em sua compreensão lúcida da vida. A insônia fez do jovem Cioran um transeunte soturno, passava noites e noites em claro vagando, primeiro, por sua cidade e logo depois por Paris, a cidade em que viveu toda sua vida adulta. Filosoficamente fundamental é a conseqüência da insônia, ela engendrou nele uma visão do tempo como algo imóvel. O que existia era a eternidade com suas diabruras, e o sono era uma dessas diabruras da eternidade, fazendo do homem este animal tão fácil de iludir. Dormia e tinha a ilusão de mudança, de recomeço, quando na verdade era só mais do mesmo, ou seja, a eternidade em seu movimento próprio e devir infindo.
Dessa visão da eternidade saída das madrugadas sem fim que a insônia lhe proporcionou, Cioran nos deu outro modo de pensar a história. Para ele a história não é linear e progressiva, era uma página de grandes tristezas e arroubos irrepetíveis de genialidade. Um povo tem seu espírito e ele irá se perpetuar até que aquele povo consiga degenerar este espírito. O homem, esse animal coletivo, cuja solidão, técnica de refinamento do espírito, lhe é imprópria, sempre exgarçarar a força que o criou, por utopias, as mais patéticas. Voltamos a afirmar, não tem outro jeito, até por que, como o próprio Cioran diz: “A lucidez completa é o nada”.
Assim como há os arroubos de genialidade, há também, por outro lado, momentos privilegiados onde podemos ver a formatação quase exata da decadência. Antes, porem, de nos depararmos com esses momentos, vamos rapidamente ver o que para o nosso autor vem a ser decadência: “Os mitos tornam-se novamente conceitos: é a decadência (...)”, ou ainda: “A decadência não é outra coisa senão o instinto tornado impuro pela ação da consciência.” Vemos com clareza a ligação feita entre progresso racional e decadência, a formalização do pensamento e a perda das intrigantes referências do absoluto nos jogaria no pequeno mundo das verdades demonstráveis, destituindo o mistério para no seu lugar colocar a prova, tudo se prova, todo argumento, tudo se iguala e enfraquece, decadência!
“E se busco a data mais mortificante para o orgulho do espírito, se percorro o inventário das intolerâncias, não encontro nada comparável a este ano de 529, no qual, por ordem de Justiniano, a escola de Atenas foi fechada. Uma vez oficialmente suprimido o direito à decadência, crer torna-se uma obrigação... Este é o momento mais doloroso na história da Dúvida.”
Diante dessa visão da história, como um sem fim de horrores, seria ridícula a idéia humana de designar um objetivo, uma finalidade, a todo este triste teatro que se desenrolará para sempre. Nós, contemporâneos não somos dignos nem dessa eternidade que nos espera, por desprezá-la, por louvarmos longa e fervorosamente a nossa mediocridade, por não querer sair da ilusão hedonista que vivemos. O homem moderno conquistou a liberdade, os direitos, a tranquilidade, mas o vazio é imenso, mais que o grande vazio, o que identificava o homem moderno é o esgotamento, a náusea e a sensação de inutilidade diante das conquistas modernas, todas demasiadamente carentes de absoluto, de transcendência, enfim, de uma força fundamental que fosse capaz de forjar e justificar sempre e de novo a existência humana, como foram, para Cioran, as obras de Homero, Bach e Shakespeare.
Para finalizar acho fundamental, ao menos, dois esclarecimentos. Um sobre algo que já está no texto, a saber, a pertinência, e até mesmo a positividade, da escrita em Cioran, o outro para tentar acalmar os mais apressados, aqueles que logo ligariam tal filosofia a um elogio ao suicídio.
Bem, para tentar jogar um pouco mais de luz à questão da escrita, acredito que como um bom pessimista e refinado blasfemador, Cioran escreve para dissolver tudo que for frágil no pensamento ocidental, para desdenhar e destituir a ilusão mesquinha e egoísta de progresso, por exemplo. Mesmo aquelas teorias mais consistentes podem sofrer um dano irreparável pelas mãos céticas, pelos olhos lúcidos e pelas gargalhadas desiludidas e sarcásticas deste que é uma dos maiores pessimista do sec XX. Ele escreve, por fim, para restituir a dúvida fundamental em todos os espaços desta sociedade fria e cheia de pequenas certezas, alargando os limites do pensamento. Essa tarefa é absolutamente positiva, diluir certezas seculares ou certezas pouco rigorosas é uma ótima forma de limpar o solo para pensamentos futuros, que se interesse em criar um mundo novo, tão forte quanto ele pode ser.
Chagamos ao fim da nossa pequena exposição sobre este que agora podemos chamar (talvez) com menos terror de mártir da lucidez.
Referêmcias Bibliográficas
Emil M. Cioran__Breviário da Decomposição.
História e Utopia
Silogismos da Amargura
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