segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Egoísmo vs Altruísmo

As categorias egoísmo e altruísmo só existem em um âmbito reacionário. São utilizados sempre para cobrir uma incompreensão; quero dizer: não existem. O que geralmente se aponta na figura do egoísmo, a ação egoísta, é algo inextinguível e igualmente indecidível: a de que todo movimento parte do mesmo, e que por mais que seja sempre um projetar, e que sendo um pro-jetar supõe-se um outro, o mesmo não pode ser suprimido, pois já toma parte do movimento, podendo ser considerado o próprio movente do movimento, ainda que a própria identificação do movente enquanto movente seja um problema de larga escala, um problema filosófico. Pois seja, o mesmo não é o ego (o eu), portanto não poderia ser egoísmo. Sempre me pergunto: quando foi que o mesmo se tornou eu, e toda uma concepção filosófica foi ignorantemente antropologizada, esquecendo-se também que o homem em questão é histórico, local, transitório? Mas, a vigência desta possibilidade não é vista como possibildade, e o agente deste resultado acredita estar em um espaço privilegiado. A partir disto quis interpretar todas as coisas sob a ótica que é somente sua, i. é, ele reduz todas as coisas ao seu campo de visão. Com isso, a maneira de lidar com questões clássicas da filosofia é remetido a um contexto muito menos amplo, o mesmo se torna eu, a ação se torna efetivação: acredita-se alcançar a verdade, mas - que ironia -, a verdade se perdeu. Egoísmo e altruísmo são a operação desta perda. Toda a ação é subestimada, toda a graça e o entusiasmo da vontade é personalizado, torna-se causal, determinável (ou pretende-se ser), e estas que são a atitude egoísta vs altruísta são finalmente separadas, como quem quer separar o bem do mal. Ora, o movimento que quer, quer a si mesmo, não importa se seja deixando o outro ser outro, se indo de encontro a ele; uma coisa é certa: outro não supõe, tal qual o mesmo, um âmbito antropológico apenas. Outro é o inindentificável, que sejam as forças do acaso, que sejam o que não se está pensando agora, são tudo aquilo que escapa, em suma: tudo; tudo que está para além da vontade. Supondo-se evidentemente que nem a própria vontade seja condenável ao âmbito antropológico Por um problema lógico deveria ter-se dispensado as categorias egoísmo/altruísmo, porém trata-se de dispensá-las por uma razão muito maior: estas categorias não existem.
Quem é o altruísta? É, sob a lógica dessa categorização, o mais egoísta. Porém, estas categorias só existem para que isso não seja visto; para negar toda vontade, para domesticá-la, normatizá-la.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Gianni Vattimo e o Niilismo

Gianni Vattimo, filósofo contemporâneo, funda o ‘pensamento fraco’. Numa atitude, assumidamente, hermenêutica e niilista, ele propõe uma retomada da filosofia pela escuta da historia do ser heideggeriano, da perda dos fundamentos fortes da metafísica no processo iniciado com Nietzsche, e de uma hermenêutica que entende a história da filosofia do ocidente como enfraquecimento do ser. O Niilismo é fundamental para Váttimo, primeiro porque é a questão maior do nosso tempo, depois, porque é ele mesmo quem vai possibilitar responder com liberdade e criatividade ao problema do relativismo e da aniquilação de fundamentos, sem voltar para nenhuma visão totalizadora. Ou seja, Vattimo, assim como Nietzsche, assume o niilismo como chance, única chance, ele diz, contra o próprio niilismo.
Para não perder as conquistas da filosofia em seu gesto mais violento, a saber, a destruição de todo e qualquer fundamento metafísico feito pelo pensamento nietzschiano e sua posterior afirmação de amor à vida trágica, Vattimo assume o niilismo e caminha com ele, com a hermenêutica e com a história do ser para uma nova racionalidade.
Uma racionalidade que não era mais a racionalidade forte dos fundamentos e da verdade. O desejo por esta nova racionalidade é pensado como alicerce do 'pensamento fraco' e ele, como alicerce para o sucesso dela frente ao relativismo anêmico e suicida da contemporaneidade.
Há questões fundamentais, para Vattimo, que compõem estes dois temas. Estas questões são, a descoberta, feita por Nietzsche, da ligação entre pensamento metafísico e modos de controle e poder. A não obrigatoriedade de se pensar, em oposição a esta ligação, teorias que queiram libertar o sujeito de um possível sujeição. O contrário de tal desejo, ou seja, a possibilidade de convivência harmônica, mas não obediente, em que se perceba que esta ligação é uma convenção e que, por meio de um consenso advindo desta nova racionalidade, podem se repensadas de maneira positiva, sem o peso do fundacionismo metafísico. A vivencia do ser como acontecer e refletir à meia luz, um ser que saiba ser acontecimento no estado enfraquecido em que nos encontramos. O niilismo, porque nega a força, que é afinal o fundamento de toda metafísica, ou seja, citando o próprio Vattimo, nega a "força que o próprio pensamento sempre se atribuiu, em nome do seu acesso privilegiado ao ser enquanto fundamento" (Pier Aldo Rovati e Gianni Vattimo, O Pensamento fraco, prefácio) e se coloca em uma atitude de questionamento constante. E, por fim a recolocação da ligação entre ser e linguagem sendo pensada agora como transmissão de uma história do ser para uma história do enfraquecimento do ser, que é, afinal, para Vattimo, a única história possível de ser feita, distorcida e transmitida dentro da filosofia ocidental.
Há em Vattimo, como acabamos de ver, pressupostos para o seu filosofar, a maneira de se relacionar com estes pressupostos é tão importante quanto eles mesmos. A hermenêutica niilista, método utilizado por Vattimo, é o pensamento que se instala nas ruínas da filosofia e com uma atitude de respeito, escuta e distorção, promove e propaga o pensamento fraco.
Respeito porque ele filosofará sempre a partir destas ruínas, porque será sempre um repensar da e na odisséia filosófica. A escuta tem relação direta com este respeito, só que ganha em relação ao desvelamento do ser, que agora nada mais é. Desvelamento que nunca acontece por inteiro, sempre é parcial, é preciso então atenção e escuta. Distorção é a uma das partes ativas da ontologia fraca e niilista de Vattimo, pois que, ela é a possibilidade de uso de conceitos metafísicos em seu enfraquecimento, colocando-os agora em serviço desta sua filosofia da ‘meia luz’ contra a luminosidade da metafísica.
O termo meia luz, tirado do texto do próprio Váttimo, é perfeito para falarmos deste pensamento que usa, com toda propriedade do horizonte pós-metafísico, os termos e temas da tradição contra ela mesma. Ou seja, um ultrapassamento que sempre mantém. Nunca abandona nada, sempre considera estes termos, conceitos e temas sendo constitutivos de seu passado, como referências que vão ser sempre reencontradas e pensadas como “dados do destino, no sentido de envio” (Rosano Pecoraro, Niilismo e pós-modernidade – Introdução ao pensamento Fraco de Gianni vattimo).
Tentando sintetizar o ‘pensamento fraco’ dizemos, trata-se de um pensamento de herança e distorção(distorção como remeter-se, é assim a tradução da palavra distorção para o italiano, e Vattimo aproveita tal aproximação, entre distorção e remeter-se para falar mais uma vez de algo que será sempre repensado, já que é constituinte. Mas, sempre é bom lembra que tais termos, conceitos ou temas serão repensados) da tradição filosófica como enfraquecimento do ser no horizonte niilista pós-moderno. Para superar este horizonte Vattimo pede que esta herança seja aceita em sua grandeza de ruína como único lugar de onde podemos falar articuladamente, já incluída ai uma nova racionalidade e certa idéia de consenso histórico cultural, contra este niilismo. A aceitação desta herança pressupõe, inevitavelmente, a aceitação da religião cristã. Religião que é fundada, como observa Vattimo, positivamente, sob o signo da interpretação de um livro e da fraqueza de Deus, ou seja, sua encarnação. Ter-se feito homem e habitado entre nós é o sinal desta fraqueza que Vattimo ver em toda a história da cultura ocidental, desde ai.
Depois desta pequena incursão no pensamento vattiminiano, é necessário, para fazer jus ao esforço anti-metafísico do próprio Vattimo, colocar alguns questões:
Será que Vattimo não cai em uma filosofia do mesmo, e, se assim for, volta a fundamentos metafísicos por não conseguir desestruturar isto que é próprio dele, a saber, seu fechamento em si mesmo, seu machismo, seu eurocentrismo, humanismo, ou para usarmos o termo correto, seu fundamentalismo?
Qual, então, é a real relevância da filosofia de Vattimo para nós brasileiros que sempre falamos apartir de outras línguas e culturas? Para nós que somos formados por culturas em que o Deus, único e perfeito, não chegou nem a nascer, quem dirá a morrer? Para nós que somos emoldurados por uma série de outros. Até onde essa filosofia nos serve, nos acolhe?
Fica claro que qualquer filosofia que queira ser uma resposta ao niilismo, sem recair nos fundamentos metafísicos, deve sempre se valer de uma abertura ao outro em sua radicalidade, pois, só assim percorrerá o movimento que estrutura toda questão, a saber, a não aceitação das definições supremas que sempre afasta o outro e funda todo fundamento metafísico.
Para concluir devo dizer que desconfio fortemente da precariedade e parcialidade das questões e, possíveis, hipóteses que levantei aqui. Mas ainda assim me parece ter, este discurso, percorrido parte de um caminho fundamental para pensar, com menos fatalismo e desespero, aquilo que coloquei no início: o que pode e deve fazer a filosofia de hoje, como ela se insere e como ela pode buscar o para alem do niilismo contemporâneo.

domingo, 21 de março de 2010

Prova de mestrado (para não ganhar bolsa)

A questão do conhecimento desde muito cedo surgiu como problema para a filosofia. Afinal, é a sabedoria um conhecimento? Existem, com relação ao conhecimento, inúmeras questãos intrínsecas, o que no mérito do fato, diz respeito ao próprio filosofar, e em termos relacionáveis, diz respeito também ao que é a verdade.
Não caberá aqui um esboço acerca do que são filosofia, verdade e conhecimento para a filosofia antiga e as posteriores nuances que estes sofrem nos outros períodos históricos. Pretendo apenas esboçar, ou tentar esboçar, a interpretação de Heidegger para essas questões. E isto de maneira indireta, perpassa sua crítica à modernidade -sobretudo àquelas questões acerca da objetividade - e a sua recolocação da ontologia.
Heidegger sabiamente aponta que antecipadamente a toda colocação ôntica, vigora uma questão ontológica. O que está em questão sempre é o ser, mas não propriamente, ou apenas, o ser do ente ao qual a cada vez nos voltamos, mas àquele ser que se está sendo naquele olhar para o ente, naquela participação ou co-pertença que diz acerca de um ente qualquer. Isto é o que se convencionou como ver em perspectiva, e é de inspiração fenomenológica. A fenomenologia chamou a atenção para como se "olha" as coisas, ela propriamente se interessa pela relação, afinal aquilo que se diz acerca de um ente externo, diz muito acerca de quem diz. A nuance, ou a mudança, que se adquire da fenomenologia de Husserl para a ontologia de Heidegger, pouco ou quase nada nos interessa aqui. Pois com o que foi dito acima, já podemos alcançar a crítica de Heidegger à modernidade, ou mais especificamente, a maneira como a modernidade tratou o conhecimento.
A etimologia da palavra conhecimento (gnosiologia), tanto em grego quanto em latim dizem coisas muito próximas: elas falam de nascer, de geração. Não quero com isso ignorar toda possível crítica de Heidegger às traduções latinas, mas apenas lembrar que toda a modernidade fala e faz do conhecimento algo bem diverso do que essas duas palavras possivelmente dizem.
A partir da leitura de Heidegger, apontarei duas críticas:
A primeira se trata da estrutura proposicional. Esta se sustenta na divisão sujeito/predicado. Ela é, obviamente, uma estrutura usual, toda a linguagem se assenta sobre esta dualidade. Porém, o lugar onde esta dualidade tributa sua origem não é dual, quer dizer, sujeito e predicado se co-pertencem mutuamente, e o lugar desta origem diz respeito a uma possibilidade aberta e tornada usual, e isto passa despercebido na prática que se faz da verdade ligada à representação. Representação diz justamente de algo que não está presente, que está separado (p.ex. a relação sujeito/objeto), e a verdade da modernidade é a verdade desta separação.
A segunda crítica diz respeito à causação ôntica. Curiosamente, esta crítica também aponta para a não-presença dos dados, daquilo que a ciência toma para si como conhecimento. Quer dizer, um corpo humano são um conjunto de células e órgãos, o resultado de composições químicas e físicas ou a inteiração psicossomática de um sujeito específico? Este cálculo inadequado dos efeitos se anulam, não dizem, pois não apontam para o que vige, isto é, para a presença. Percorrendo o caminho inverso do devir, elas encontram algo não essencial da presença, algo que sobrevenha como precaução ou mesmo substituição. Com esta crítica não se quer eliminar toda esta forma de proceder, mas apenas ganhar o que porventura perdeu-se na busca da sabedoria. E isto diz respeito ao deixar ser, à presença como finitude, e ao aspecto não-causal da existência.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

'Eu gostava de poesia, só depois fui me aproximar da ficção'

Sangue na cidade. Alguém sai pela noite e corta a língua das pessoas, sempre a noite, pois é a noite que toda a profundidade se esvai e só resta uma fresta de luz decepcionada para se aventurar e se esconder.
Várias línguas já haviam sido cortadas. O sol trazia atônito, mais um dia com ruas cheias de línguas e, ao seu redor, poças de sangue, numa cidade cada vez mais espantada. O crime monstruoso chocava a todos, mas era sempre um choque tardio, pois que, sem língua, tudo era só grito e todo grito era previsto.
Letargia.
O choque se desdobrava em vazio horizontal, suicídios e, às vezes, risadas tristes ou alegres.
Domingo, 23, ocorreu algo diferente, diferente. Diferente.
Os bois comeram alguns homens. O cinema voltou a ser adocicado e rupestre, mais do que tudo, os anjos, os anjos fodiam entre si, e cada foda era água nova pela assexualidade trazida pela resposta negativa de cada foda, mas essa água se dividia em duas no seu esporro, vindo da dor no membro inexistente. Essa água era dupla desmedida que se fazia cristalina, e outra além de negativa, uma cachoeira/hidrante-aberto-por-pivetes era o que saia dos anjos desiludidos. Pronto, anjos que queriam água espessa (cachoeira/hidrante-aberto-por-pivetes), seriam agora camundongos hipertensos, para sempre insatisfeitos.
Os vermes habitavam os restos das línguas dentro das bocas, agora, apodrecidas da gente da cidade. Ainda assim, o nariz inventava um som. Era um som grande e forte de nozes e dos vermes que estavam na língua e, de vez em quando, subiam da boca ao nariz. Talvez fizessem isso pelo som metafórico e voador que sai do nariz, talvez quisessem voar, talvez quisessem ser metáforas voadoras, talvez quisessem apenas se precipitar, em todos os casos estavam no som.
A cidade o prédio o mar, que devorou os anjos, não todos, só alguns.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Quase-anedota

Apartamento. Dia. 3 Amigos conversam. O número 1 sente cheiro de fiação pegando fogo. Vai verificar e vê que o aquecedor do banheiro esta em chamas. Correria geral, nenhum dos três sabe bem o que fazer. Chega uma quarta pessoa que foi chamado para resolver o problema e resolve. Esta quarta pessoa não é amiga de ninguém que está no apartamento. Depois do problema resolvido e da quarta pessoa ter indo embora, os três amigos conversam vivamente sobre a situação. Eles fazem piada sobre o acontecido e sobre a incapacidade deles diante do acontecido. No meio desta conversa o amigo número 2 diz para o número 3(o número 1 tinha saído nesta hora, ido ao banheiro, não sei bem):
-Nós, burgueses, estamos absolutamente despreparados para este tipo de situação.
O número 3 responde:
-Eu não sou burguês. Estou despreparado, mas não por ser burguês.

Referir ou diferir?
Uma multiplicidade se aloja na longa esteira do olhar duplo. Homem-maquina tecendo arbitrariedades e desejando o entre das heterogeneidades. Desejo sempre submerso pela força do movimento dissipador deste entre. (Como origem a fonte se afoga, como fenda sem força que não funda). Desejo movimento. Nomadismo ambulante.

Se algo me deixa alegre e vivo é, sempre, pelo sofrimento que me causa. Não um sofrimento de martírio, mas, sim por um descontentamento irreconciliável (é pela necessidade, então, que nos deslocamos), que é afinal o lugar onde se articula a possibilidade para por toda questão, necessariamente tremida, sem foco, só jogo, sem resolução, nem visibilidade de verdade. Sem antes, nem anti.

Adiantar-me, precipitar-me, numa precipitação que lambe todo limite e sente seu gosto-outro, e sabe de maneira doentia (que é a maneira do discurso outro) desejar este gosto, para além de conhecê-lo. O que é isso se não um desejo ilegítimo, (vindo sei lá de onde, ou nascido desta precipitação, sendo esta precipitação sem nascedouro. Precipitação.) de desafirmar, sem, porém, cair na pura oposição dicotômica re-afirmadora do discurso, ele mesmo. Desafirmar ele mesmo, só sendo ilegítimo. Desafirmar o legitimo, a possibilidade possessiva e opressora da legitimidade.

Certa ponte-espiral, que foi levada por aquela última chuva forte, já se precipitou (claro, em espiral). Agora, posso.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Tarefa de Ruminação: leitura, interpretação e notas acerca da "Genealogia da Moral" (ainda inconcluído, e talvez, para sempre)

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Para uma bem aventurada leitura da Genealogia da Moral, o próprio Nietzsche nos dá algumas dicas:

<<Se este livro resultar incompreensível para alguém, ou dissonante aos seus ouvidos, a culpa quero crer, não será necessariamente minha (...) a forma aforística traz dificuldades (...)para a qual se requer uma arte da interpretação>>

Com isto, Nietzsche não nos dá apenas a dica de como ele quer que seja lida a sua obra, mas também - e, sobretudo- o que ele quer com a sua Genealogia. Para isso, o próprio também nos deu algumas dicas: <<Necessitamos de uma crítica aos valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão>>.

E também:

<<Não existem coisas que mais compensem serem levadas a sério; sua recompensa está, por exemplo, em que talvez se possa um dia levá-las na brincadeira, na jovialidade>>.

"Fazer crítica", e para isto Nietzsche sabe muito bem, é preciso ir até os elementos históricos, documentais, como diria Foucault parafraseando o próprio N - a genealogia é cinza...
Mas é preciso mais que tudo - e a isto o sentido histórico vem a servir - situar-se dentro da vida: <<Nas experiências presentes, receio, estamos sempre "ausentes" - Aforisma 1 do Prólogo>>. E por isso se disse: NECESSITAMOS de uma crítica.
Então o que aparece como apenas uma pergunta, se mostra essencial e ganha contornos de uma reconhecida cânone nietzscheana: a vida não pode ser entendida a partir da moral e da compaixão. Torná-las um problema vem a ser um rigoroso trabalho de destruição, porém, uma arquitetônica destruição. Pergunta-se então: O que significa situar-se dentro da vida?
No prefácio assim está escrito: <<não mais busquei a origem do mal por trás do mundo>>. Em substituição a isso, coloca-se:
<<sob que condições o homem inventou para si os juízos de valor "bom" e "mau"? e que valor eles têm?>>
Não mais buscar atrás do mundo. Nos primeiros aforismos da primeira dissertação, aponta-se sarcasticamente à pesquisas empreendidas em direção a um lado vergonhoso do próprio humano. O grande incômodo de Nietzsche é ver nesses pesquisadores toda uma inércia coercitiva, em que na mesma tendência em que surge a moral - o valor moral como negação absoluta de valores, negação contra hierarquias - esta mesma tendência permanece no entusiasmo destes pesquisadores, que buscam no lugar errado a solução para a origem dos valores morais. Nietzsche aponta então a sua verdade, e também o seu método: ao longo da primeira dissertação encontrei ao menos 3 métodos com os quais N. instrumentaliza a sua pesquisa, são eles: a etimologia (filologia), o sentido histórico -estes dois primeiros vindo a se confundir entre si-, e por último a valoração. Esta, a pedra filosofal de Nietzsche, seu método fundamental. Com a valoração, e somente com ela, é que este filósofo ao fazer pesquisa histórica e ao estudar a etimologia das palavras, pode chegar às conclusões de suas obras, mais propriamente desta Genealogia. Com ela, N., para tudo que olhava, se perguntava: há força nisto? Isto promete vida? Isto propaga crescimento, ascensão?

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A primeira dissertação empreende uma distinção de tipos que são de grande importância dentro do pensamento de Nietzsche. Ele fala do nobre, contrapondo o vulgar, fala do ressentido e do sacerdote, contrapondo ao guerreiro. Tais distinções, como se sabe, são estamentais, mas é um traço espiritual que deveras importa: Segundo um traço típico de caráter: e é este o caso que aqui nos interessa. (af.5)
Até o aforisma 6, Nietzsche traça a distinção básica no modo de valorar "superior". E apresenta, ainda no 6, o sacerdote, o tipo "impotente", que constitui o passo decisivo da interiorização do homem, que torna-o interessante (acerca do tema da interiorização do homem, a segunda dissertação me parece tratar mais de perto).
<<Na história universal, os grandes odiadores sempre foram sacerdotes, também os mais ricos de espírito>>

A partir da inversão realizada pela interiorização do homem a partir da consagração das castas sacerdotais no poder, é que passa-se a ter os miseráveis como bons, os pobres e os doentes. Entretanto, ainda que metódico e documental, creio que Nietzsche esteja sendo sempre inventivo - mais inventivo que factual. Com a genealogia, a história passa a ter um peso menos dogmático e ganha pretensões mais interpretativas, e por isso também, poéticas. Trata-se de um trabalho histórico de descedimentação na e pela palavra. Antes, trata-se de um voluntário trabalho histórico de descedimentação na e pela palavra, pois não poderia ser diferente., i. é. não há um lugar fora do discurso. Talvez a lição da genealogia como método comece pela ordem do dizer. Ainda que de difícil conclusão, o caminho da palavra tem sua importância inegável dentro da obra de Nietzsche.

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A tese de que um genealogista não deve mais buscar a verdade "por trás" do mundo é a constatação - e a confirmação - da prevalência do aparecer tal qual oss gregos entendiam. (Seria interessante, porém incabível aqui, realizar a aproximação entre este pensador e a fenomenologia). Em lugar do "por trás" do mundo, Nietzsche foi até às invenções e ao solo propício para que elas se realizassem. A partir disto, somente, é que se poderia ver o erro das pesquisas que imbutiam na moral a utilidade, o esquecimento e não viram nelas algum tipo pervertido de valor - ou desvalor - e só então prosseguindo com a questão do valor (e não mais da moral) que se poderia entender as transformações, as decadências e inversões que desaguariam na fundamentação moral.
Então pergunto: o que há de tão fétido e irregular na moral, que mereça sua destruição, humilhação e por fim, comédia?
Respondo: É que entendendo vida enquanto vida não há nada advindo de outro lugar, outra parte que não dela mesma, que tenha autoridade para julgá-la, e o resultado disto é um modo de valorar (ou de viver) sempre desigual, múltiplo, por vezes cruel, e sobretudo sem salvação.



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