Hélio é fogo! Piada que não tem graça, só chamas e possibilidades, falamos do artista plástico Hélio Oiticica, mas poderíamos falar do gás (que é um dos mais difíceis de ser solidificado - signo Hélio -), como poderíamos falar do sol (significado da palavra Helio em grego).
O incêndio que destruiu boa parte da obra de Helio Oiticica não é mensagem de uma verdade guardada a sete chaves a muito tempo, que se insinuou em sua obra e agora tal acontecimento vem reforçar, mas, se tratando de Hélio Oiticica também não pode ser encarado como um fato qualquer. É um acontecimento. Um acontecimento que pode ser valorado como contendo forças das quais a obra de Helio sempre se notabilizou em criar.
Hélio se insurgiu contra certo racionalismo e purismo na arte brasileira, com muito rigor e experimentação. Era um dos mais jovens e vigorosos artistas do neo-concretismo. Rigor e experimentação para esses artistas nunca funcionaram como extremos, o próprio grupo surge também dessa necessidade de re-fortalecimento da experiência sensitiva e singular dentro do horizonte da radicalização conceitual em relação ao objeto artístico e seu papel e lugar na sociedade moderna que o grupo concretista, do qual a maioria deles fazia parte, já desenvolvia. O racha se deu ai, no plano conceitual, enquanto o grupo do rio, os neo-concretos, buscavam uma maior relação entre obra e vida, melhor, entre obra e vida singular, os concretista endureciam o discurso em torno de uma arte que se aglomerasse na sociedade industrial de então, uma arte que fosse utilizável, como um objeto artístico-industrial.
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Um corpo outro. Prontamente perfurado. No risco eminente da morte, sempre, portanto percorrer os buracos. Como fundos. Fendas. Molhar os buracos. Olho oco selvagem. Planta mítica e vazia roçando no crânio sensual. Buraco que em volta se inscreve com carne, sangue e água nova, a areia nova, e, logo depois, o vazio novo. Ocos revestidos de desintegrações.
No fundo do tanque, o fibrocimento, a água, a sombra molhada. A projeção de um eu não-duplo, não é repetição, é experiência do olhar que não se ver num novo protótipo de espelho d’agua sensorial. Nova compreensão de uma suposta unidade. Suposição que se derrama e se afoga em pequenas ondas no fundo do tanque de fibrocimento. Outro, feito de reflexo-outro, água-outro, fibrocimento-outro. Vida receptiva se esvaindo, esvaziando, distanciando. Participação que dissipa dicotomia ativo-passivo. Participação-criação.
A insistência na palavra outro quer traçar e marcar uma tentativa de deslimite (ou de apropriação no/do limite arte-vida) sempre executada na obra de Hélio Oiticica.
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Parangolé: vista uma parte irreconciliável do Rio de janeiro. Diáspora para sempre perdida no ar, no mar. Diáspora para sempre perdida no ar, no mar. Diáspora para sempre celebrando sua nova condição.
Nova condição: reinventar-se: celebrar o experimental. Imposição de uma nova mitologia.
A tentativa de re-fundar a África entre nós se deu no âmbito religioso-cultural (que era o âmbito próprio da cultura africana de então), mas o que acabou acontecendo foi a criação de uma religião-outro. Alguns africanos que eram da mesma etnia, mas de tribos diferentes, se juntaram e criaram o candomblé que nós conhecemos hoje. Lá, antes, em sua terra natal, cada tribo tinha seu próprio ritual e deus, aqui houve esta fusão-ruptura. Agora uma etnia inteira se junta e funda outra religião e mitologia. A tentativa é de manter as raízes, mas os acontecimentos se precipitam para a criação de novas garras simbólicas, culturais e religiosas. Por isso dizemos: Parte irreconciliável, diáspora perdida, mitologia nova, celebrativa e experimental, para ressaltar (e saltar) (n)o parangolé como ‘asa delta para o desejo’.
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O fogo não destruiu nada, com o fogo tudo é trans-formado. Uma nova sensibilidade densa, sensual e quente nascerá.
Me parece que o mercado cultural e sua estrutura, que pensa a obra de arte como objeto comportado ou conformado, ou, no máximo, escandaloso, nunca interessou a Hélio Oiticica. Este não pode ser o nosso medo, que os projetos ligados ao mercado cultural se queimem todos. Devemos, antes, aproveitar o acontecimento, invadir as ruínas, como os dadaístas invadiam lixões (mas agora temos ruínas privilegiadas, novas e específicas, ruínas do incêndio de obras de arte), e tirar dali sustentações para novas experiências abissais.
Que o incêndio nos traga, enfim, novas formas para vestir, novas formas de vestir, novos corpos. Corpos que possam se auto-desterritorizar, possam ter a força de saberem ser: Fissura para a criação.
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