segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Fui ver o Herbert de perto. Há muito que ele merecia uma atenção aproximada, um close que captasse seu sentido, seu espírito. Não é preciso ser gênio, muito menos dizer algo novo [aquela baboseira de dizer que inovou o cenário, divisor de águas etc]. Aliás, estamos falando de um cidadão bastante comum - bastante senso comum! -, um cancioneiro popular, pop mesmo, músicas comercias de 3 minutos, video clips na MTV, discos de coletânias e por aí vai. E é embarcado nessa onda de cenário da música pop nacional, que um cidadão irá assistir o Herbert de perto. Precisamos, a partir disso, antes mesmo de entrar no que será dito, lembrar: é por isso mesmo, por ser pop, comercial que não vem ao caso tal discussão. Vamos ao Herbert.
Um documentário é, sobretudo, um filme de memória. A montagem dessa memória é onde reside toda a graça e toda a discussão em torno de um documentário, seria por esse caminho que muitas vezes devemos decidir: um documentário também é ficcção. Bem como tudo que tem memória. Ou melhor, tudo o que se utiliza da memória. Ficção por ser uma construção a partir de lembranças, porém igualmente montagem, igualmente criador.
Este trata-se de um artista, de um poeta. Mas um poeta com duas faces, com duas idades. O jovem poeta, eternizado nos shows, no suor. E o atual poeta, na cadeira, voz grave, sério, porém sereno, porém poeta. Aonde situar tal ambiguidade? É claro que toda esta dupla situação [um antes, um depois], remete a uma ruptura, um fato, o acidente...mas tudo o que esta memória fez o favor de construir não foi na e pela ruptura, mas sim um sentido geral, de caminho [longo caminho...] do Herbert. Poderia ser melhor pensar em uma linha descontínua, porém remendada, mas sob a perspectiva da memória só há uma linha e é sobre esta linha que seguimos.
Talvez houvesse uma tragédia anunciada, o jovem garoto que tinha o sonho de voar mas que virou músico. Mas que virou músico com todos os tons de casualidade e fatalidade, pois o Herbert não decidiu ser músico, ela simplesmente veio até ele, cobrou dele e continua a cobrar por toda a vida. E pela música ia encontrando aquela salvação, aquele caminho de realização. Se o óculos o proibiu de tornar-se piloto, o que certamente era uma frustração, era canalisado para a música com toda a máscara do cômico e da leveza:

"Se as meninas do Leblon
Não olham mais pra mim
(Eu uso óculos)
E volta e meia
Eu entro com meu carro pela contramão
(Eu tô sem óculos)"

A leveza e a jovialidade podem ter sido a marca dos Paralamas, mas é inegável certo amadurecimento nas letras compostas pelo Herbert, e também no próprio som da banda. Em algum momento no meio do caminho da carreira do trio houve-se as seguintes palavras numa canção: O céu de Ícaro tem mais poesia que o de galileu. Esta contraposição entre a poesia (o mito de Ícaro) e a ciência (Galileu e suas teorias), evidenciam o compositor situado na tarefa do dizer poético, dos afetos, de uma vida pulsante:

"Tendo a lua aquela gravidade aonde o homem flutua
Merecia a visita não de militares,
Mas de bailarinos
E de você e eu"

Mas o lugar central da memória está ligada a um sentido que se desenrolou não desde o princípio da carreira, e que diz respeito a construção de uma vida íntima. Não se desvaloriza com isso todas as diversas possibilidades expressadas nas músicas, como a identificação com o social - os ritmos, a língua -, a contestação, a fusão com o rock argentino; um bom exemplo para isso é o disco 9 Luas, que englobam toda esta variedade. Porém o lugar central é de um amante, um amante que voava, tal qual o próprio Ícaro. Este mito diz respeito à superestimação de si e à subestimação da vida, dos perigos da vida, esta que é tão frágil. Tal mito possuia para os antigos, para os jovens da antiguidade, uma finalidade pedagógica, quase uma moral. Mas não é este o caso quando se comparado à vida do Herbert. Se olharmos a partir de sua própria visão, veremos que era este o caminho, ou o vôo, que deveria ser traçado. Alguém que age de má fé é alguém que não corresponde ao desenrolar de suas próprias ações, uma não aceitação, uma revolta. Alguém que não tem memória não age de má fé. E é este o ponto: Herbert possui a memória. Acordou, ainda sabia fazer música, permaneceu o poeta, e poeta o que é que faz? Herbert se revoltou? Não. Seria inútil perguntar se para ele dói, se ele preferia que nada daquilo tivesse acontecido, como seria se....É essa a diferença, o camarada que faz a partir de, está sempre no sentido. O camarada que não corresponde aos fatos, paralisa. Herbert numa cadeira de rodas cobre mais distâncias que a maioria dos que estão sobre duas pernas. Não cabe aqui aquele velho problema da moral, de duvidar de tudo aquilo que se anuncia bem e bom e todas as consequências disto. A questão aqui é o da memória. O documentário - a ficcção - é a memória do Herbert. É este o grande barato. E em se tratando da memória fica cada vez mais evidente que há a possibilidade de separar a memória em duas: a boa memória e a memória boa. Esta última não paralisa, nem sobre uma cadeira de rodas. A memória boa está sempre ligada ao prazer, talvez ao sentido também. Prefiro sempre pensar no Herber de agora, cantando com seu violão: quero te ver de perto/quero dizer que o nosso amor deu certo. E lembrar que esquecer é morrer, e lembrar pode ser viver.

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