quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

'Eu gostava de poesia, só depois fui me aproximar da ficção'

Sangue na cidade. Alguém sai pela noite e corta a língua das pessoas, sempre a noite, pois é a noite que toda a profundidade se esvai e só resta uma fresta de luz decepcionada para se aventurar e se esconder.
Várias línguas já haviam sido cortadas. O sol trazia atônito, mais um dia com ruas cheias de línguas e, ao seu redor, poças de sangue, numa cidade cada vez mais espantada. O crime monstruoso chocava a todos, mas era sempre um choque tardio, pois que, sem língua, tudo era só grito e todo grito era previsto.
Letargia.
O choque se desdobrava em vazio horizontal, suicídios e, às vezes, risadas tristes ou alegres.
Domingo, 23, ocorreu algo diferente, diferente. Diferente.
Os bois comeram alguns homens. O cinema voltou a ser adocicado e rupestre, mais do que tudo, os anjos, os anjos fodiam entre si, e cada foda era água nova pela assexualidade trazida pela resposta negativa de cada foda, mas essa água se dividia em duas no seu esporro, vindo da dor no membro inexistente. Essa água era dupla desmedida que se fazia cristalina, e outra além de negativa, uma cachoeira/hidrante-aberto-por-pivetes era o que saia dos anjos desiludidos. Pronto, anjos que queriam água espessa (cachoeira/hidrante-aberto-por-pivetes), seriam agora camundongos hipertensos, para sempre insatisfeitos.
Os vermes habitavam os restos das línguas dentro das bocas, agora, apodrecidas da gente da cidade. Ainda assim, o nariz inventava um som. Era um som grande e forte de nozes e dos vermes que estavam na língua e, de vez em quando, subiam da boca ao nariz. Talvez fizessem isso pelo som metafórico e voador que sai do nariz, talvez quisessem voar, talvez quisessem ser metáforas voadoras, talvez quisessem apenas se precipitar, em todos os casos estavam no som.
A cidade o prédio o mar, que devorou os anjos, não todos, só alguns.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Quase-anedota

Apartamento. Dia. 3 Amigos conversam. O número 1 sente cheiro de fiação pegando fogo. Vai verificar e vê que o aquecedor do banheiro esta em chamas. Correria geral, nenhum dos três sabe bem o que fazer. Chega uma quarta pessoa que foi chamado para resolver o problema e resolve. Esta quarta pessoa não é amiga de ninguém que está no apartamento. Depois do problema resolvido e da quarta pessoa ter indo embora, os três amigos conversam vivamente sobre a situação. Eles fazem piada sobre o acontecido e sobre a incapacidade deles diante do acontecido. No meio desta conversa o amigo número 2 diz para o número 3(o número 1 tinha saído nesta hora, ido ao banheiro, não sei bem):
-Nós, burgueses, estamos absolutamente despreparados para este tipo de situação.
O número 3 responde:
-Eu não sou burguês. Estou despreparado, mas não por ser burguês.

Referir ou diferir?
Uma multiplicidade se aloja na longa esteira do olhar duplo. Homem-maquina tecendo arbitrariedades e desejando o entre das heterogeneidades. Desejo sempre submerso pela força do movimento dissipador deste entre. (Como origem a fonte se afoga, como fenda sem força que não funda). Desejo movimento. Nomadismo ambulante.

Se algo me deixa alegre e vivo é, sempre, pelo sofrimento que me causa. Não um sofrimento de martírio, mas, sim por um descontentamento irreconciliável (é pela necessidade, então, que nos deslocamos), que é afinal o lugar onde se articula a possibilidade para por toda questão, necessariamente tremida, sem foco, só jogo, sem resolução, nem visibilidade de verdade. Sem antes, nem anti.

Adiantar-me, precipitar-me, numa precipitação que lambe todo limite e sente seu gosto-outro, e sabe de maneira doentia (que é a maneira do discurso outro) desejar este gosto, para além de conhecê-lo. O que é isso se não um desejo ilegítimo, (vindo sei lá de onde, ou nascido desta precipitação, sendo esta precipitação sem nascedouro. Precipitação.) de desafirmar, sem, porém, cair na pura oposição dicotômica re-afirmadora do discurso, ele mesmo. Desafirmar ele mesmo, só sendo ilegítimo. Desafirmar o legitimo, a possibilidade possessiva e opressora da legitimidade.

Certa ponte-espiral, que foi levada por aquela última chuva forte, já se precipitou (claro, em espiral). Agora, posso.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Tarefa de Ruminação: leitura, interpretação e notas acerca da "Genealogia da Moral" (ainda inconcluído, e talvez, para sempre)

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Para uma bem aventurada leitura da Genealogia da Moral, o próprio Nietzsche nos dá algumas dicas:

<<Se este livro resultar incompreensível para alguém, ou dissonante aos seus ouvidos, a culpa quero crer, não será necessariamente minha (...) a forma aforística traz dificuldades (...)para a qual se requer uma arte da interpretação>>

Com isto, Nietzsche não nos dá apenas a dica de como ele quer que seja lida a sua obra, mas também - e, sobretudo- o que ele quer com a sua Genealogia. Para isso, o próprio também nos deu algumas dicas: <<Necessitamos de uma crítica aos valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão>>.

E também:

<<Não existem coisas que mais compensem serem levadas a sério; sua recompensa está, por exemplo, em que talvez se possa um dia levá-las na brincadeira, na jovialidade>>.

"Fazer crítica", e para isto Nietzsche sabe muito bem, é preciso ir até os elementos históricos, documentais, como diria Foucault parafraseando o próprio N - a genealogia é cinza...
Mas é preciso mais que tudo - e a isto o sentido histórico vem a servir - situar-se dentro da vida: <<Nas experiências presentes, receio, estamos sempre "ausentes" - Aforisma 1 do Prólogo>>. E por isso se disse: NECESSITAMOS de uma crítica.
Então o que aparece como apenas uma pergunta, se mostra essencial e ganha contornos de uma reconhecida cânone nietzscheana: a vida não pode ser entendida a partir da moral e da compaixão. Torná-las um problema vem a ser um rigoroso trabalho de destruição, porém, uma arquitetônica destruição. Pergunta-se então: O que significa situar-se dentro da vida?
No prefácio assim está escrito: <<não mais busquei a origem do mal por trás do mundo>>. Em substituição a isso, coloca-se:
<<sob que condições o homem inventou para si os juízos de valor "bom" e "mau"? e que valor eles têm?>>
Não mais buscar atrás do mundo. Nos primeiros aforismos da primeira dissertação, aponta-se sarcasticamente à pesquisas empreendidas em direção a um lado vergonhoso do próprio humano. O grande incômodo de Nietzsche é ver nesses pesquisadores toda uma inércia coercitiva, em que na mesma tendência em que surge a moral - o valor moral como negação absoluta de valores, negação contra hierarquias - esta mesma tendência permanece no entusiasmo destes pesquisadores, que buscam no lugar errado a solução para a origem dos valores morais. Nietzsche aponta então a sua verdade, e também o seu método: ao longo da primeira dissertação encontrei ao menos 3 métodos com os quais N. instrumentaliza a sua pesquisa, são eles: a etimologia (filologia), o sentido histórico -estes dois primeiros vindo a se confundir entre si-, e por último a valoração. Esta, a pedra filosofal de Nietzsche, seu método fundamental. Com a valoração, e somente com ela, é que este filósofo ao fazer pesquisa histórica e ao estudar a etimologia das palavras, pode chegar às conclusões de suas obras, mais propriamente desta Genealogia. Com ela, N., para tudo que olhava, se perguntava: há força nisto? Isto promete vida? Isto propaga crescimento, ascensão?

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A primeira dissertação empreende uma distinção de tipos que são de grande importância dentro do pensamento de Nietzsche. Ele fala do nobre, contrapondo o vulgar, fala do ressentido e do sacerdote, contrapondo ao guerreiro. Tais distinções, como se sabe, são estamentais, mas é um traço espiritual que deveras importa: Segundo um traço típico de caráter: e é este o caso que aqui nos interessa. (af.5)
Até o aforisma 6, Nietzsche traça a distinção básica no modo de valorar "superior". E apresenta, ainda no 6, o sacerdote, o tipo "impotente", que constitui o passo decisivo da interiorização do homem, que torna-o interessante (acerca do tema da interiorização do homem, a segunda dissertação me parece tratar mais de perto).
<<Na história universal, os grandes odiadores sempre foram sacerdotes, também os mais ricos de espírito>>

A partir da inversão realizada pela interiorização do homem a partir da consagração das castas sacerdotais no poder, é que passa-se a ter os miseráveis como bons, os pobres e os doentes. Entretanto, ainda que metódico e documental, creio que Nietzsche esteja sendo sempre inventivo - mais inventivo que factual. Com a genealogia, a história passa a ter um peso menos dogmático e ganha pretensões mais interpretativas, e por isso também, poéticas. Trata-se de um trabalho histórico de descedimentação na e pela palavra. Antes, trata-se de um voluntário trabalho histórico de descedimentação na e pela palavra, pois não poderia ser diferente., i. é. não há um lugar fora do discurso. Talvez a lição da genealogia como método comece pela ordem do dizer. Ainda que de difícil conclusão, o caminho da palavra tem sua importância inegável dentro da obra de Nietzsche.

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A tese de que um genealogista não deve mais buscar a verdade "por trás" do mundo é a constatação - e a confirmação - da prevalência do aparecer tal qual oss gregos entendiam. (Seria interessante, porém incabível aqui, realizar a aproximação entre este pensador e a fenomenologia). Em lugar do "por trás" do mundo, Nietzsche foi até às invenções e ao solo propício para que elas se realizassem. A partir disto, somente, é que se poderia ver o erro das pesquisas que imbutiam na moral a utilidade, o esquecimento e não viram nelas algum tipo pervertido de valor - ou desvalor - e só então prosseguindo com a questão do valor (e não mais da moral) que se poderia entender as transformações, as decadências e inversões que desaguariam na fundamentação moral.
Então pergunto: o que há de tão fétido e irregular na moral, que mereça sua destruição, humilhação e por fim, comédia?
Respondo: É que entendendo vida enquanto vida não há nada advindo de outro lugar, outra parte que não dela mesma, que tenha autoridade para julgá-la, e o resultado disto é um modo de valorar (ou de viver) sempre desigual, múltiplo, por vezes cruel, e sobretudo sem salvação.



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