O
SÁTIRO E O MACACO
Pois
o problema da ciência não pode ser reconhecido no terreno da ciência
-
Nietzsche, tentativa de autocrítica
A leitura do primeiro texto de
Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, nos
oferece, em seus parágrafos §7 e §8, um bom lugar de pensamento a partir de
duas figuras, dois arquétipos para o que é o homem e o que é a natureza. Este
livro, que inaugura o pensamento de Nietzsche na história da filosofia
ocidental, em tudo já adianta todas as questões centrais que o Nietzsche da
maturidade irá abordar: A compreensão trágica da existência, a relevância do
deus Dioniso na constituição do mundo grego (e da vida), a noção central da
vida como criação, a prioridade da arte...
O tema que viso discutir aqui foi
sugerido por uma passagem que aparece no parágrafo §8:
A
natureza, na qual ainda não laborava nenhum conhecimento, na qual os ferrolhos
da cultura ainda continuavam inviolados – eis o que o grego via no seu sátiro,
que por isso mesmo não coincidia com o macaco (O Nascimento da Tragédia, §8,
p.57).
A passagem citada está enredada por uma
discussão em torno do conhecimento, contraposto à arte, esta entendida como
cura da existência – cura do pessimismo -, e que de modo mais aproximado às
questões do nascimento da tragédia, possuem relevância naquela cultura mítica
dos gregos, donde pôde proceder a arte trágica a partir de rituais ao deus
Dioniso. Algumas linhas antes, Nietzsche nos diz: “o conhecimento mata a
atuação, para atuar é preciso estar velado pela ilusão” (Op.cit., §7, p.56).
Duas coisas estão aí colocadas em paralelo: ação e conhecimento. Se nos
ativermos à maneira como o conhecimento em sua modalidade moderna nos vem, a de
causalidade mais particularmente, entenderemos o conhecimento como um, talvez
não impeditivo à ação meramente, mas – e aí sim de maneira contundente, como um
elemento que modifica a qualidade da ação. Subsiste nesta compreensão, algo
pelo qual o filósofo Heidegger irá desenvolver muito bem e que atravessa todo o
seu pensamento: a questão da técnica. Ao tentar chegar às coisas pelo caminho
da causalidade e da técnica, perde-se o orgânico e espontâneo da existência em
vista de um domínio (ou de uma tentativa de) sobre as coisas do mundo, em uma
tentativa de vencer o peso da ação[1]. É
por esta via, também, que se chega à dicotomia entre teoria e prática, caso que
nesta obra de Nietzsche aparece na perda do caráter espontâneo e (cri)ativo da
cultura trágica dos gregos.
Nesta primeira fase de sua obra, ainda preso a
idéias românticas, Nietzsche não desenvolve inteiramente a contraposição entre
o pessimismo e o otimismo e tende a tomar partido entre um e outro. Em outra
obra desta mesma época, ao estudar o socratismo da cultura, acusa-o de ser
essencialmente otimista: a dialética! E o faz justamente contrapondo ao
espírito trágico. Mais tarde, em seu período da maturidade, irá deixar menos
ambíguo o que queria dizer com otimismo e pessimismo, e os joga a um
pertencimento mútuo:
[...]
Ao reconhecer Sócrates como décadent, eu
havia dado uma prova inteiramente inequívoca do quão pouco a segurança de
minhas garras psicológicas era ameaçada por quaisquer idiossincrasias morais –
a moral mesma como um sintoma de decadência é uma inovação, uma singularidade
de primeira ordem na história do conhecimento. Quão alto [...] havia eu saltado
acima da lastimável conversa de néscios sobre otimismo versus pessimismo! (Ecce Homo, O Nascimento da Tragédia, §2)
Nietzsche abandona esta contraposição
em prol de um salto para uma questão maior, e que, entretanto, já estava de
maneira embrionária nesta sua primeira obra. Do que estamos falando? Da
compreensão dionisíaca de mundo. É por isso que se tornou necessário para ele
modificar o subtítulo da obra em questão: Helenismo e Pessimismo. Pois a
contraposição não está no âmbito que separa o otimismo do pessimismo, mas sim
noutra altura, a que possibilitou ao povo grego gerar uma arte tão profunda, de
um povo imensamente criador. Essa contraposição, é importante expressar isto, não coincide também com outra, a dos
deuses Apolo e Dioniso, uma vez evidente que a força criadora requer tanto de
uma quando de outra. Assim, o problema colocado de maneira mais profunda
assenta-se de maneira aqui ainda pouco esclarecida por sobre o que se
compreende por Mito e o que se compreende por Ciência. Mas quando se fala aí em
ciência, poderia se falar em cristianismo – ou, moralidade do pensamento
causal. As intenções de Nietzsche, que unem a primeira às suas últimas obras, é
a de promover uma virada na compreensão do mundo que supere de maneira radical
isto que determinou decisivamente toda a história do ocidente. Seu primeiro
esboço nesta direção é muito bem expresso na contraposição entre o sátiro e o
macaco. Guardemo-nos de enxergar nesta contraposição apenas uma contraposição
entre ciência e religião; até mesmo porque o texto do Nascimento da Tragédia
nos oferece o testemunho de que antes de ser contraposto ao macaco, o sátiro é
antes contraposto ao Pastor. Fiquemos atentos ao que a contraposição visa.
O que é, portanto, um sátiro? É, antes
de tudo, uma criatura encantada. Algo como um proto-humano, mas que se localiza
distante da civilização tanto pela sua constituição física quanto pelo seu
caráter. Sua constituição física é também sua constituição espiritual: meio
homem, meio animal: da cintura para baixo possuía patas de bode, da cintura
para cima era um homem de barba. Nietzsche entende que “diante dele, o homem
civilizado se reduzia a mentirosa caricatura” (op.cit.). Mas – por quê? Por que
o homem civilizado está abaixo deste proto-humano fictício? O que uma criatura
lendária poderia ter de superior aos homens da cultura?
Há duas implicações na comparação do
Sátiro com o homem comum. A primeira delas é a primeira contraposição que
Nietzsche se utiliza: A do Sátiro com o Pastor. Ao fazer essa contraposição,
separam-se duas religiosidades, duas atitudes espirituais. A religiosidade é,
em suma, uma relação com um deus ou deuses – com a criação. Se há na
contraposição duas religiosidades, há, portanto, dois modos de se relacionar
com esse deus ou deuses, e com a criação. Como são esses dois modos distintos
de religiosidade? Testemunha-se tal distinção na relação do homem com a
natureza, e é em cima do que se pretende com a natureza, que Nietzsche incide
sobre, para fazer o seu juízo que separa o Pastor e o Sátiro. “Tanto o sátiro
quanto o pastor idílico de nossos tempos modernos são ambos produtos de um
anseio voltado para o primevo e o natural”. (Op.cit.)
Sabemos bem que este primeiro Nietzsche em tudo
coincide com o movimento romântico alemão. Este desejo pela natureza é
característico do romantismo. Mas ao contrapor o Pastor com o Sátiro, Nietzsche
encontrou algo então, que o distingue de um mero idealismo pela natureza. Ele
encontrou o dionisismo! O Sátiro enquanto uma espécie de sacerdote do deus
Dioniso é o mensageiro da alegria e embriaguez da visão dionisíaca do mundo.
Dioniso é sempre identificado à natureza, como uma força de atração e repulsão,
de reunião e separação, em resumo: a força da natureza é sempre superior aos
homens, e de modo tal que o divino está identificado à natureza naquilo que ela
carrega de mais ambíguo, que é a um só tempo terrível e belo, dolorido e
prazeroso – os adjetivos visam sempre a separar, a predicar, e essa tendência
pela separação é superada com Dioniso; talvez a palavra grega Deilós (terrível, maravilhoso) seja
capaz de conceder o valor fiel desta adjetivação, sua ambigüidade. Mas, bem
mais que uma adjetivação, o deus Dioniso não permite uma substantivação
ingênua. Deus da embriaguez, ele é o deus da ilusão, e a ilusão não vela, ela sim,
desvela (Dioniso sempre inseparável de Apolo). A natureza sempre identificada
como essa força imensa, relacionada às pulsões sexuais mais profundas
(“onipotência sexual”), ela devolve a natureza perdida do homem. É neste
sentido que a arte é entendida como cura, pois há nela um elemento catártico do
encantamento, alcançado pela compreensão dionisíaca do mundo. Para Nietzsche, o
homem atinge a sua máxima religiosidade quando toma para si o poder de criação,
ou melhor, quando permite que seja ele o intermédio das forças da natureza para
a criação. É neste sentido que o mito compreende a sua grandeza, e o Sátiro,
criatura fictícia, revela-se como o verdadeiro homem. E por que o Sátiro é dito
o verdadeiro homem? Como algo fictício pode vir a ser o verdadeiro?
Pois é onde o fictício e o real não se separam. Onde,
o que este jovem Nietzsche chamou de ilusão,
é o elemento que guia, onde o valor de verdade está identificado à criação, e
não à certificação.
Tendo por base todos esses elementos de
compreensão, a contraposição ao macaco mostra a sua força. O homem civilizado
ao chegar à verdade do macaco enquanto proto-humano, o faz com o alto preço de
ter perdido aquela força criadora e libertadora do Sátiro.
Mas afinal, o que é o macaco?
Todo homem moderno compreende que é o macaco o
nosso ancestral. Mas esta colocação é ainda errônea do ponto de vista
científico. Nós, da espécie humana, e os macacos, possuímos um ancestral em
comum. Esse ancestral comum é o que chamam de “elo perdido”. O verdadeiro,
deste ponto de vista, guarda-se através de uma longa cadeia evolutiva que
conduz de volta, no tempo cronológico, à existência de espécies que puderam
gerar o denominado homo sapiens. Nada
temos a contestar do ponto de vista de sua certificação, portanto. Que o homem
é um bípede originado de um ancestral em comum com os macacos, nada mais
correto! Não levando em conta a própria semelhança, o que a asserção desta
verdade nos oferece do ponto de vista filosófico é, entretanto, irrelevante.
Para se chegar à verdade do macaco, perde-se a verdade do Sátiro: é
precisamente isto o que Nietzsche naquelas passagens do Nascimento da Tragédia nos diz.
É como dizer que para o homem estar em verdadeiro
contato para com a natureza, é preciso deixar falar uma voz encantadora que
cobre do vivente nada mais que a força ativa de sua própria criação, afirmação.
Nietzsche fala em um “fingido estado natural”. Como devemos compreender isto?
Proponho pensarmos da seguinte maneira: que do ponto de vista teórico, a
natureza não deve ser um problema, pois ela permanece intangível. Eis a
diferença fundamental: querer a natureza para o criador é querer a si mesmo
como natureza. Tal manifestação concentra-se na figura lendária do Sátiro. O
homem grego se via no Sátiro. Por outro lado, de maneira incrivelmente distinta
é querer a natureza como algo que parte já fora de si próprio, como um legado
distante – um “elo perdido” -, muito se fala neste sentido contra os instintos:
que o instinto é a herança animal em nós, que a animalidade é a bestialidade.
Mas se pensarmos que o furor da técnica em nossos dias atuais, e sua incrível
racionalidade, oferecem uma dominação e um controle na mesma medida em que gera
o caos e a desordem, compreenderemos que a bestialidade não está do lado da
animalidade, mas sim naquilo que constantemente se louva e se acredita
identificar como o propriamente humano, como aquilo que lhe é qualitativamente
superior: o cérebro.